comentário de É-Pá in "as ameaças ao SMS"
Lá vou tentar descer do Rocinante e aproximar-me da Dulcinea – (o SNS) …
Comecemos, pelo contexto ideológico, básico, mas nesta situação é inevitável ser redundante para não ser omisso, nem equívoco.
Penso que a Esquerda bate-se ferozmente pela intransigente defesa do Estado Social, mas não sabe como defendê-lo.
O papel social do Estado, não apenas na Saúde, encontra-se consagrado na Constituição da República (art. 63º e seguintes).
Todos conhecemos (ou devemos conhecer) os termos genéricos dos direitos sociais aí definidos que incluíam a educação, a assistência médica e medicamentosa, o subsídio de desemprego, o salário mínimo, os abonos de família, etc.O que temos de debater, sem quaisquer complexos de vivermos em contextos ideológicos que nos separam politicamente, são os pressupostos que informam a legislação portuguesa na área da Saúde, desde 1979, ano da criação do SNS. Aí, define-se que o Estado deve assegurar o direito à saúde (promoção, prevenção e vigilância) a todos os cidadãos.A partir desta preposição, ou independentemente destes pressupostos, acreditamos ou não no Estado Social.
Pessoalmente, quer por formação política ou por deformação profissional, acredito na necessidade da existência de um Estado que defenda, promova e assegure os direitos sociais de todos os cidadãos. Esta não é uma posição estritamente marxista acerca do papel do Estado, sendo compartilhada por amplos sectores ideológicos e, até, pela da Igreja, explicitada na encíclica “Rerum Novarum” de Leão XIII, que nos finais do século XIX, sistematizou a chamada “doutrina social da Igreja”.
Na verdade, quem no século XX, conseguiu levantar do chão este Estado Social, não foram nem os regimes comunistas do Leste da Europa, nem os sistemas democratas-cristãos do Ocidente. Foram, uma espécie de “bissectriz” deste amplo espectro político, i.e., as sociais-democracias do Norte da Europa.
Cedo se verificou que este Estado Social era um sorvedouro dos dinheiros públicos e seria necessário encontrar fontes de financiamento que o garantissem. Mas, apesar deste enorme condicionalismo, poucos ou raros quadrantes políticos o punham em causa.
Continuou a alimentar-se do OGE e a consumir uma progressiva percentagem do PIB.
Na verdade, a Lei de Bases da Saúde portuguesa (1990) será o primeiro documento político do regime democrático, que equaciona – sem o resolver - o problema da sustentabilidade do SNS.
É nesta década de 90 que, decorrente do fim da bipolarização do Mundo, com o desmoronar dos regimes de Leste, surge no ambiente político forças neo-liberais que, desabridamente, questionam o papel social do Estado. Em toda a “velha” Europa levanta-se o espantalho da destruição do Estado Social.
A sua defesa torna-se uma bandeira da Esquerda unindo comunistas, socialistas, sociais-democratas, radicais e, naturalmente, o movimento sindical. A Direita levanta o espantalho dos custos económicos das políticas sociais e temendo as consequências de propor a extinção dos direitos sociais, que informam o património político e cultural europeu, envereda por defender sistemas mistos, quer na Saúde, quer na Educação, quer na Segurança Social.
Ou seja, insidiosos percursos de transição no sentido da privatização (leoninas parcerias são o melhor instrumento), que resultam na apropriação pelo capital do pilar social.
E assim, sucumbem os meios públicos para assegurar as políticas sociais.
O desenvolvimento do SNS no sentido que garantir equidade, acessibilidade e qualidade aos cidadãos-utentes, trouxe um permanente deslizamento orçamental e constantes dores de cabeça aos sucessivos governos, sendo o objecto de constantes “chicanas políticas” entre o Poder e as Oposições e vice-versa. Deste modo, o Estado Social começou a ser atormentado por terríveis espectros de sobrevivência.
Os partidos políticos (quaisquer que sejam), quando na oposição, defendem-no acerrimamente e uma vez no poder não sabem como pagá-lo. Não há a coragem política de o afrontar directamente. Todos sabem (Esquerda, Centro e Direita) que os custos políticos, resultantes da sua extinção ou amputação, são incomportáveis. Tentam “passar a bola” de uns para os outros a ver quem “escorrega”.
O Estado Social, e por consequência a subsistência do SNS, que é uma emanação directa da tributação sobre os rendimentos dos portugueses conhece, então, diversas perversões. A primeira, terá sido a infeliz subtileza e a pérfida indefinição do “tendencialmente gratuito”. Depois, aparecem as “taxas moderadoras” e todos os artifícios – só iludíveis por um discurso bacoco que apela ao não discernimento - para encobrir uma programada caminhada para esquemas de co-pagamento e de auto-financiamento. Nada, nenhum destes malabarismos, consegue tapar o deficit crónico que se acumula de ano para ano.
Porque, a Saúde, enquanto bem social é isso mesmo.
Porque, os gastos na Saúde em Portugal são sempre referenciados a um PIB pobre - não tenhamos vergonha de o admitir - e tal situação, coloca-nos, artificialmente, na média europeia. Mas quando consideramos os gastos “per capita” com a saúde, Portugal “produz” - fundamentalmente através do SNS - uma importante prestação social barata e qualificada. E uma prestação global à frente de Países ditos “ricos” ou economicamente desenvolvidos.
Esta é a falácia constantemente omitida pelos coveiros dos direitos sociais.
Claro que é sempre possível obter ganhos em eficiência, nomeadamente, através da introdução de novos métodos de gestão, da qualificação e motivação dos profissionais, da melhoria dos sistemas de informação, da acuidade e fiabilidade das análises financeiras e contabilísticas, da racionalização (não racionamento!) do consumo de medicamentos e de meios complementares de diagnóstico, da aposta em medidas de prevenção e, finalmente, da promoção da educação sanitária da população. Isto é verdade para qualquer sistema, em qualquer parte do Mundo.
E, é, também, isso que o SNS tem de fazer.
O SNS está, no caso do nosso País, condicionado por questões orçamentais subsidiárias do PEC. È justo que assim seja num quadro de solidariedade nacional.
É normal que se procurem novas soluções.
As PPP’s, por exemplo.
Estas, aparentemente, capazes de aliviar o peso orçamental da Saúde, não abrem caminhos para grandes voos. Elas, politicamente, introduzem o mercado na área social o que, na ausência de um poder fiscalizador eficaz, ágil e pronto, podem introduzir novas perversões. Uma delas será, ao contrário do que se deseja, o disparar dos custos.
Todos conhecemos a (in)capacidade fiscalizadora do aparelho de Estado. Outra, mais perversa, será – no momento político azado - apropriar-se do “P” de público e alijar pela borda o “P” de parceria.
As dificuldades orçamentais do Estado não são independentes, nem estranhas, aos portugueses. Isto é, quando o Estado está com dificuldades orçamentais, a maioria dos portugueses tem problemas. Quando não crescemos economicamente ou quando o Estado não consegue controlar a despesa, é sobre a sociedade que isso se reflecte. Isto é, para a grande maioria dos portugueses os direitos sociais são, nessas alturas, determinantes e essenciais.
Por isso, nas situações de crise, julgo que a dotação orçamental da Saúde não pode sofrer cortes.
O Estado tem o dever de salvaguardar a capacidade de manter as prestações sociais. De ser o “guarda-chuva” do implacável rebate social, advindo das más condições económicas ou financeiras. Nesta situação, contenções orçamentais no sector social, ditadas por condições financeiras adversas, podem ser sinónimo de rupturas sociais.
Entre 2004 e 2007, as despesas totais do Estado aumentaram 9,6%, enquanto que as despesas com a Educação e Saúde dos portugueses cresceram apenas 2,2%. O SNS, apesar de todos os esforços de racionalização das despesas e das reformas para o aumento da eficiência é, apesar disso, uma das vítimas desta contenção “cega”.
Mesmo assim, “aguentou-se”, tornando-se, é notório, mais frágil.
Não pode é ser permanentemente exaurido. Porque a sobrevivência do SNS, joga-se, exactamente, aqui.
Uma persistente “sub-orçamentação” do SNS, abre espaços que serão (estão a ser), num lógica neoliberal, rapidamente preenchidos pelo sector privado.
A lógica neoliberal pode ser, tão somente, uma oportunista proposta de redução de impostos. A primeira vítima será o Estado Social.
O Estado não pode ficar “prisioneiro” de opções políticas, aparentemente, estratégicas, mas, na prática, “esvaziadoras” do Estado Social. Não pode permitir que as estratégias de desenvolvimento sejam ensombradas por um dilacerante e falso dilema: “para salvar o sistema, é necessário abdicar de direitos sociais”. Ou chamemos-lhes, antes, “regalias” porque, depreciando-os, será mais fácil abocanhá-los.
O Estado não pode “deslocalizar” para o mercado, a resolução dos problemas sociais. O mercado por mais virtuosidades que lhe atribuíam, não tem essa capacidade!
É aqui que entra a política “pura e dura”. Incompatível com estilos de governação híbridos, politicamente indefinidos (centristas), teoricamente abrangentes, ditos, “pragmáticos”. O pragmatismo é o vazio político sistematizado. É a política feita por contabilistas.
Vivemos na “velha” Europa subsidiária dos direitos sociais. Mas, também, observamos uma Europa que, paulatinamente, desde o fim da II Guerra, começou a “demolir” o Pacto Social, fundamental para a sua reconstrução. Uma Europa organizada num modelo supranacional que, hoje, é o principal canal e um expedito veículo para a introdução dos conceitos e políticas neoliberais, nas nações agregadas.
É preciso remover as condições objectivas que facilitam a instalação (restauração), no espaço europeu, dessas políticas neoliberais travestidas de imensas e aliciantes racionalidades económicas, visionárias de sucessos imediatos, mas totalmente vazias de solidariedade e equidade social.
Porque a sua progressiva instalação vai acabar por “matar” o SNS.
Há uma maneira de, politicamente, resolver estas questões: um Governo socialista que execute políticas socialistas.
Poderá ser dificil no actual contexto, mas não é exigir muito!
7:20 PM