domingo, 21 de outubro de 2007

Professor Nuno Grande - TempoMedicina

Nuno Grande diz que falta diálogo à governação de Correia de Campos
Ministro tem uma visão pouco «humanista» da Saúde
Para Nuno Grande, se o SNS cumprir o orçamento não funciona. Mas sendo esta a principal preocupação de Correia de Campos, «exemplar» no trabalho «administrativo», revela uma visão pouco «humanista» do sector. Por isso, o médico do Porto defende a reinvenção do conceito de João Semana.
Considera-se «um médico de província numa grande cidade» e diz que a sua carreira começou quando, para ajudar um doente, ficou sem dinheiro para o eléctrico e teve de ir a pé para casa. Talvez por isso ache que a humanização da Medicina está nas mãos dos novos «João Semana» e é nesta perspectiva que critica a visão «contabilística» que Correia de Campos tem da Saúde. Amigo pessoal do ministro, Nuno Grande elogia-lhe o trabalho, mas «numa perspectiva meramente administrativa, não tanto numa perspectiva humanística».
«O ministro não dialoga, toma decisões», diz, para acrescentar que a sua principal preocupação é «não esgotar o orçamento», algo que, a acontecer, e nos actuais moldes, significa apenas que o sistema não funciona. «Para ser bom [o Serviço Nacional de Saúde], tem de dar prejuízo, ou seja, tem de dar resposta. E dar resposta às necessidades pode significar um custo cada vez maior.»
O médico, que assistiu ao nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), revela que não esperava que ele evoluísse desta forma: «Confesso que fui um pouco optimista e pensei que havia processos políticos capazes de dar resposta [às necessidades financeiras do SNS]». De resto, o problema reside no desenvolvimento tecnológico da Medicina nas últimas décadas que, por si só, encareceu os cuidados de saúde, despertando também uma maior procura destes mesmos cuidados por parte da população. «Quando o SNS arrancou prestava cuidados muito primários e, à medida que se foi tornando cada vez mais moderno nas suas actuações, foi sendo cada vez mais custoso.»

Doentes sugerem os exames

Satisfeito com a capacidade de intervenção que a divulgação científica, mormente por via da internet, trouxe aos doentes, Nuno Grande identifica aqui também um factor de promoção do desperdício, introduzindo o conceito de inequação do consumo. «Se a procura fosse apenas para as verdadeiras necessidades, até poderia ser equilibrada, mas hoje, e pelo acesso que a maior parte das pessoas tem à informação sobre os progressos científicos, os desejos são muito superiores às necessidades, enquanto os recursos são muito inferiores».
«Todas as grandes empresas farmacêuticas e tecnológicas têm processos de divulgação massiva dos seus progressos e, acriticamente, as pessoas vão tomando contacto com isso e quando chegam ao consultório já são elas quem sugere os exames — “Ó senhor doutor, não posso fazer uma ressonância?”, perguntam e, muitas vezes, nem sabem o que isso é», critica.
Por outro lado, pela simples melhoria dos cuidados de saúde, é natural que a procura aumente e, como tal, aumentem também os custos. Por esta razão, aquele que é um dos fundadores do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar considera que a luta travada por Correia de Campos «é perfeitamente desigual».
Algo desconfiado em relação à «ciência rápida» bebida dos novos meios de informação, o professor de Anatomia, que durante mais de 20 anos manteve actividade clínica como médico de família, discorda dos que dizem haver aqui algum desprestígio da Medicina, e considera apenas que aquilo que de «misterioso a profissão médica possuía é hoje menos evidente», e «o médico já não fala de cátedra». Se há algum desprestígio da profissão, defende, ele é provocado pelos «médicos que requisitam», aqueles que usam meios complementares de diagnóstico e exames, mesmo «sabendo antecipadamente que não vão ter nenhum efeito concreto». Fazem-no «apenas para dar resposta à necessidade do cliente».

Humanizar para poupar

Para Nuno Grande, o segredo da Medicina moderna assenta em saber jogar com os recursos de maneira a ser útil sem ser excessivo. «Temos de ensinar aos jovens médicos quais são os recursos que temos e como devem ser utilizados. Senão, a tendência é requisitar», adverte.
E aqui a humanização assume um papel preponderante. «O médico de hoje, mesmo o médico de família, já não está tão próximo das circunstâncias familiares como estava antigamente», diz, para acrescentar que «a “guerra” com as USF é exactamente essa: integrar socialmente o centro de saúde», que, advoga, deverá inspirar-se no modelo do País de Gales, onde os centros de saúde foram transformados numa espécie de «loja do cidadão com resposta para todos os problemas — de saúde, sociais e técnicos — do utente».
A proximidade médico-doente leva a que se estabeleça uma relação de confiança que permite ao médico «decidir pelo doente» sem ter a tentação de ceder a todos os pedidos que aquele lhe faz. Dispensam-se «exames inúteis» e o doente sai «bem tratado e satisfeito». Agora, quando a relação é impessoal, é natural, defende, que ao ver negado um pedido para realização deste ou daquele exame, o doente desconfie de que a intenção do médico é apenas poupar.
E por mais avançadas que sejam as tecnologias à disposição do diagnóstico, «a relação médico-doente não é tecnológica, é humana», mesmo no que toca ao processo de diagnóstico. De resto, a sua própria experiência confirma esta ligação: «Fiz clínica durante vinte e tal anos e, quando revi os ficheiros, achei espantoso que, em cerca de 12% dos casos, cheguei ao diagnóstico [depois confirmado] sem que a história clínica me permitisse chegar aí.» Isto «apenas pela forma como o doente me transmitiu o que sentia», porque «a comunicação entre o médico e o doente está para lá do racional» e é isto que as novas tecnologias podem anular, receia.
Para o professor, que apesar de jubilado continua a dar aulas, há que «estimular a consciência profissional dos médicos», também por forma a que eles se sintam responsáveis, «quer em nome dos utentes quer em nome da profissão». O médico, diz, «só tem sentido se estiver ao serviço dos doentes, mas também tem de ter em atenção que está ao serviço dos doentes porque tem uma determinada formação e essa formação atribui-lhe a capacidade de decidir o que é justo para cada caso e de saber o custo de cada uma das acções».

Pode ser gratuito, mas alguém tem de pagar…

Apesar da crise que o SNS atravessa e da procura do «lucro pelo lucro», Nuno Grande não acredita no fim daquilo a que chama «uma grande conquista», mas sim numa grande reformulação, onde o actual sistema sirva de suporte à orientação que vier a ser tomada.
O professor diz-se mesmo disposto a integrar o recém-criado movimento de defesa do SNS, desde que este mantenha «um serviço de altíssima qualidade, voltado para os cidadãos», mas sabendo de antemão que nunca poderá ser gratuito. Ou melhor, «o SNS até poderá ser tendencialmente gratuito para o utente, mas alguém tem de o pagar», ironiza. E avança com algumas formas de financiamento, além dos impostos, como sejam as doações ou transformando a contribuição numa obrigação social das empresas. «Pensar nele [SNS] gratuito é tirar-lhe possibilidades de resposta», conclui.

Paula Mourão Gonçalves


Dialogar para melhor governar

A capacitação e a responsabilização dos utentes assume neste processo um papel fulcral, com o médico a defender a criação de associações de utentes «civicamente responsáveis e que funcionem», sendo-lhes atribuído «o mesmo direito de intervenção que às ordens profissionais», articulando-se directamente com o Governo. Desta forma, advoga, os utentes sentir-se-iam «responsáveis pelo que pedissem e teriam consciência de quanto custava. A grande mudança está aí».
Nas palavras de Nuno Grande, o diálogo é exactamente o que falta a Correia de Campos para imprimir à governação um pendor mais humanista. «O ministro não tem tido a perspicácia política que devia ter, porque não explica as coisas», nomeadamente quando toma medidas em que «o impacte nacional predomina sobre o impacte local, como é exemplo o encerramento de várias maternidades». Em termos técnicos, o professor diz nada ter a apontar a estas decisões, no entanto acha que só podem ser tomadas depois de discutidas com as populações as soluções alternativas, e explicadas as implicações de cada uma delas.


Contra os «teddy tachos»

Nuno Grande fez parte do grupo de jovens clínicos que se bateu pela criação das carreiras médicas. «Andámos ao gritos pelas ruas, contra a polícia. Os antigos senhores chamavam-nos os teddy boys e nós a eles os teddy tachos», descreve, para se regozijar com a vitória de um sistema que, na sua opinião, «permitiu uma grande melhoria na qualidade da Medicina portuguesa».
Perante o fim anunciado do sistema que ajudou a criar, o médico transmontano que adoptou o Porto como sua cidade, exige da Ordem que se oponha a isto, ajudando a redefinir critérios. E, embora concordando com a contestação em relação à forma como a profissão está estabelecida, adverte para uma realidade comum a outros sectores da democracia portuguesa: «Aqui, como noutras profissões, estamos mais preocupados com os direitos do que com os deveres.»

TM 1.º CADERNO de 2007.10.22
0712621C08107PMG41A

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

Santana Maia (entrevista TempoMedicina)

Santana Maia fala sobre as actuais transformações no sector
«Não se pode deixar que a Saúde se transforme num negócio»
Para Santana Maia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) «é um bem colectivo que importa manter», universal e tendencialmente gratuito. O antigo bastonário admite, contudo, que é necessária «alguma contenção», sem penalizar os doentes, e critica «a progressão exagerada de prestadores privados».
«Tempo Medicina» — Na sua opinião, quais são, ou serão, as consequências, para a profissão médica, de todas as transformações que têm ocorrido no sector da Saúde nos últimos tempos?
Santana Maia — Depende do que se considerem os últimos tempos, se os últimos 50 anos, se os últimos cinco anos. Nos últimos 50 anos há transformações brutais. Nos últimos cinco anos há menos transformações, mas também importantes. A Medicina faz-se cada vez mais em equipa e menos individualmente, a profissão médica é cada vez menos exercida pelo médico isolado, pelo antigo médico de consultório. Por outro lado, a Medicina está a transformar-se numa profissão de assalariados — sejam funcionários do Estado, de sociedades privadas ou de outros médicos — e menos de trabalhadores independentes. Há uma certa proletarização dos médicos, contra a qual me manifestei muitas vezes, enquanto presidente da Secção Regional do Centro e bastonário da Ordem dos Médicos. Aliás, enquanto bastonário, e mesmo antes, propus a criação de uma lei-quadro de convenções, porque entendo que a Medicina convencionada era interessante para os médicos e para a população. Mas até hoje ainda não se conseguiu criar essa lei.
«TM» — Pensa que essa lei-quadro traria benefícios?
SM — Sim. A Medicina convencionada já existe, mas de uma forma anárquica, desigual, e devia ser disciplinada e alargada, perfeitamente límpida, clara, transparente. Uma lei-quadro das convenções beneficiaria os médicos e a população, ao dar a possibilidade de o doente escolher o médico.
«TM» - A proletarização dos médicos está a acentuar-se?
SM — Tende a acentuar-se, porque os médicos, por si só, porque trabalham isoladamente, não conseguem fazer os investimentos que são precisos na área da Saúde e cada vez mais serão funcionários.
«TM» — Quando assistiu ao nascimento do SNS esperava que tivesse esta evolução?
SM — Assisti ao seu nascimento e saudei-o. E tenho saudado a sua longevidade e importância, tem sido fundamental. Os dados da Saúde em Portugal melhoraram espectacularmente através do SNS, que é um bem colectivo que importa manter, embora evoluindo. E é evidente que tem havido evoluções, algumas, a meu ver, demasiado grandes. Mas, dex qualquer forma, tem-se mantido.
«TM» — Não esperava que seguisse o actual caminho?
SM — Exactamente, tem havido privatizações a mais, tem havido um benefício do capital. A Saúde, a meu ver, é um bem, não é um negócio, e tem havido negócio a mais na Saúde. É evidente que é um negócio importante, que mexe com muito dinheiro, mas não pode deixar-se que se transforme num negócio e está a correr-se esse risco.

«Modelo EPE é preferível ao SA»

«TM» — A crescente transformação de hospitais públicos em EPE, as parcerias público-privadas (PPP), entre outras mudanças, podem vir a significar o fim do SNS? Como vê essa relação?
SM — Começou a falar-se nos hospitais EPE através de uma proposta de estatuto hospitalar, era ministra a dr.ª Maria de Belém e era bastonário o prof. Carlos Ribeiro. E falava-se na sua criação de uma forma generalizada, alargada a todo o País. Na altura opus-me a isso, e de facto não foi para a frente. Eu entendia que devia haver primeiro uma experiência num ou dois hospitais e foi o que se passou. O Hospital da Feira foi a primeira EPE, deu bons resultados e alargou-se a outros. O ministro Luís Filipe Pereira criou os SA, que são sociedades comerciais anónimas diferentes dos EPE, que são entidades públicas do tipo empresarial, mas são públicas. Apesar de tudo, julgo que o modelo EPE é preferível ao das SA. Com as SA corria-se o risco de privatização, porque, em caso de dívidas, sendo sociedades anónimas os credores podiam tomar conta delas. As EPE não correm esse risco. As PPP podem ser uma solução para a falta de dinheiro, para investimento, do Estado, são uma espécie de SCUT na Saúde. Depois há vários tipos de parcerias, só no investimento ou também na exploração.
«TM» — Como se posicionará o SNS perante os prestadores privados?
SM — O SNS mantém-se, pagando aos privados. Hoje cada vez mais há separação entre entidade pagadora e prestadora, mas penso que tem havido excessos ao querer passar os privados a prestadores e o Estado só a pagador. Esta progressão de prestadores privados é que é exagerada. Deve haver prestadores privados, mas na Saúde, como noutras áreas, o Estado deve continuar a ser o principal prestador, através de hospitais do sector público administrativo e EPE.
«TM» — Tem sido surpreendido com algumas das soluções adoptadas no SNS? Por exemplo, com o aumento das taxas moderadoras?
SM — Acho mal que as taxas moderadoras tenham sido aplicadas ao internamento e às cirurgias, porque ninguém é internado e operado por gosto. As taxas moderadoras são constitucionais se forem moderadoras e não se forem para fazer dinheiro ou funcionar como co-pagamento. O espírito do SNS é ser um serviço público, universal e tendencialmente gratuito. E deve manter-se como está previsto na Constituição. Porque se o SNS passar para os privados, passa a haver uma Medicina dos ricos e uma Medicina dos pobres.

«Deve haver uma certa contenção»

«TM» — O SNS continuará a ser de acesso universal, geral e tendencialmente gratuito?
SM — Sim, dentro de determinados limites. Hoje assistimos ao envelhecimento da população, que vive mais e depende cada vez mais da Saúde e dos médicos, de medicamentos e exames muito caros, porque a Medicina tecnologicamente evoluiu muito, os gastos da Saúde têm aumentado exponencialmente. O doente não deve ser penalizado por isso, mas deve haver uma certa contenção em pedir exames complementares de diagnóstico, fundamental para aliviar os custos da Saúde, para que se possa manter o acesso de todos os doentes ao SNS.
«TM» — Na sua opinião, é inevitável uma evolução no próprio SNS?
SM — O SNS como foi concebido era impraticável agora, era impossível aguentar os seus custos, mas há que ter cuidado com as privatizações, que não levam fundamentalmente a economias. A sua aplicação deve variar consoante a evolução, mas dentro do conceito do SNS, que está certo. Por exemplo, antigamente havia muitas leprosarias e sanatórios e bastou aparecer uma medicação para que desaparecessem instalações brutais em todo o Mundo.
«TM» — O que pensa da grande preocupação com o controlo dos gastos?
SM — Acho que tem de haver um controlo, e um controlo apertado, desde que isso não se faça sentir na falta de meios absolutamente necessários.
«TM» — Concorda que há desperdício no SNS?
SM — Sim, e o combate ao desperdício é fundamental. E o actual ministro tem tomado algumas medidas positivas.
«TM» — E outras polémicas...
SM — Sim, por exemplo as taxas moderadoras. E penso que a reestruturação das Urgências foi feita um pouco precipitadamente, em vez de se estudar o problema, pôs-se logo em prática. Tem de haver bom senso, bati-me sempre por isso.

«Carreiras médicas estão em perigo»

«TM» — Defende intransigentemente as carreiras médicas?
SM — Exactamente. Saudei, ainda enquanto estudante do 6.º ano, o chamado Relatório das Carreiras Médicas, que foi publicado em 1961, era secretário de Estado Gonçalves Ferreira, que, a meu ver, foi o precursor do SNS. Mas o relatório apareceu antes, em 1959, era eu estudante do 6.º ano. As carreiras médicas foram muito importantes, fundamentais, para a qualidade da Medicina. Agora, os contratos individuais de trabalho podem acarretar uma perturbação grande para as carreiras médicas, que estão em perigo.
«TM» — Também teme pelo futuro das carreiras?
SM — Temo um pouco pelo futuro das carreiras médicas, embora ache que é imprescindível que continuem. Mesmo com os contratos individuais, nos hospitais EPE, as carreiras podem manter-se. Mas é verdade que num hospital privado o patrão pode nomear o médico que quiser e é a subversão das carreiras. Depende da vontade que houver e acho que o Ministério da Saúde deve ter grande atenção e não permitir desvios das carreiras, que são a trave mestra do SNS. Deixar adulterar as carreiras médicas é um mau caminho para a qualidade da Medicina. Embora as carreiras tenham sido subvertidas, na prática, pelo tipo de concursos, pelos critérios de avaliação, em que houve uma subversão do aspecto clínico pela parte administrativa. Mas isso é fácil de corrigir.

Helena Nunes

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«Saúdo a Rede de Cuidados Continuados Integrados»

«TM» — O envelhecimento da população também tem aumentado os custos da Saúde?
SM — Sim, por isso saúdo o Dec.-Lei 101/2006, que criou a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, que a meu ver tem potencialidades enormes para resolver o problema da interface entre a Saúde e a Segurança Social. A actual rede, nas unidades de internamento de média e longa duração, já permite o co-pagamento, pela Segurança Social ou pelo próprio doente. Antes, o ministro Luís Filipe Pereira, com o Dec.-Lei 281/2003, criou uma rede de cuidados continuados, mas só de Saúde, o que significava que não podia haver co-pagamento pelos doentes do SNS. Esta lei nunca avançou, porque trazia custos brutais para a Saúde.

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«Jovens médicos mantêm o espírito de Hipócrates»

«TM» — Em que é que os jovens médicos de hoje são diferentes dos do seu tempo?
SM — Não vejo muitas diferenças, profissionalmente. A mentalidade dos jovens médicos continua a ser boa, profissionalmente continuam a ser bem preparados e mantêm o espírito de Hipócrates. No cumprimento das regras deontológicas e éticas os médicos de agora não são melhores nem piores que os antigos. No meu tempo não havia carreiras médicas, cada um ia à vida e lutava por si próprio. Hoje só há médicos especialistas, fruto da evolução das especialidades, e as condições de trabalho são melhores, as unidades de saúde estão mais bem equipadas. Mas os jovens médicos correm o risco de ser cada vez mais assalariados.
«TM» — Hoje os médicos também podem não estar nas carreiras...
SM — Defendi, quando foi criada a Associação Portuguesa dos Médicos da Carreira Hospitalar, que devia chamar-se apenas associação dos médicos hospitalares, porque incluir carreira na denominação era redutor. O médico, cada vez mais, pode trabalhar no hospital e não estar na carreira. Continuo a defender as carreiras intransigentemente, mas isso não significa que a associação não possa incluir médicos que não estejam na carreira, mas trabalhem nos hospitais, para que eles próprios se possam pronunciar sobre as carreiras.

Maior ligação entre os médicos

«TM» — O que pensa da criação das USF?
SM — A criação das USF é uma ideia boa, mas continua a perpetuar um vício, que é a separação absoluta entre clínicos gerais e médicos hospitalares, o que é mau. Partindo do princípio que os especialistas hospitalares devem ir aos centros de saúde — aliás, há várias experiências, por exemplo em Valência, em que todos os médicos fazem parte da mesma unidade de saúde —, as unidades locais de saúde, como a de Matosinhos, são um bom exemplo.
As USF têm contribuído para melhorar a situação dos médicos e dos doentes — com a prestação de mais cuidados domiciliários e um atendimento mais personalizado aos doentes —, mas também não têm tido a expansão que se previa.
«TM» — As unidades locais de saúde são um modelo positivo?
SM — O modelo de unidade local de saúde é positivo, mas quase não tem avançado porque as pessoas não querem. Acho fundamental que exista uma ligação maior entre os especialistas hospitalares e os de Medicina Geral e Familiar. Penso que nos centros de saúde devia haver, além da Medicina Geral e Familiar, outras especialidades. Isto é, em vez de os doentes se deslocarem aos hospitais para as consultas de especialidade, as especialidades viriam aos centros de saúde, as consultas externas dos hospitais deviam, em parte, ser feitas nos centros de saúde.

TM 1.º CADERNO de 2007.10.15
0712611C06107HN40A

João Semedo (entrevista TempoMedicina)

João Semedo defende médicos a tempo inteiro no SNS
«O temor em relação à exclusividade é infundado»
O Bloco de Esquerda defende um Serviço Nacional de Saúde (SNS) unicamente financiado por dinheiros públicos, com médicos em exclusividade integrados em carreiras. Ideias que deverão constar da sua proposta de alteração à Lei de Bases da Saúde e ao Estatuto do SNS, segundo o deputado João Semedo.
«Tempo Medicina» — Em que consistem as propostas de alteração da Lei de Bases da Saúde e do Estatuto do SNS, que o BE pretende apresentar?
João Semedo — Vamos iniciar agora o trabalho de preparação e redacção das propostas. Para nós, o problema fundamental é que as diversas intervenções e mutilações que o Estatuto do SNS e a Lei de Bases da Saúde foram sofrendo ao longo dos anos fazem com que estes, na sua versão actual, não blindem suficientemente o SNS às políticas que têm vindo a ser desenvolvidas.
«TM» — Como é que se blinda um estatuto ou uma lei às políticas governamentais, se a lei de bases diz que quem define a política de Saúde é o Governo?
JS — O problema é saber quais são os parâmetros em que se pode definir essa política. Em toda a avaliação que fizemos e naquilo que vamos propor, partimos de um princípio fundamental: o financiamento, a gestão e a prestação devem ser públicos. É exactamente isso que tem sido posto em causa e que este Governo põe em causa. Se desenvolvermos, como espero, uma lei de bases que parta deste princípio, teremos um SNS que é de facto um serviço público.
«TM» — Acha, então, que o SNS deve continuar a ser financiado unicamente pela via dos impostos?
JS — Acho que as pessoas não têm consciência de que temos hoje um sistema avançadíssimo, como não há muitos no Mundo. Nós pagamos todos para o SNS e pagamos de formas diferentes, em função das nossas remunerações.
Julgo que todos esses ideólogos da separação prestador/financiador, dos pagamentos diferenciados, etc., deviam pôr os olhos nos Estados Unidos, porque enquanto nós, ao nascermos em Portugal, temos todos o mesmo direito à saúde, nos Estados Unidos isso não existe. E o problema que os portugueses ainda não equacionaram é se querem regredir ao ponto de o direito à saúde ser apenas válido para alguns. Eu não quero, e bater-me-ei para que isso assim não seja.
«TM» — Pensa que as taxas moderadoras introduzidas recentemente representam uma tentativa nesse sentido?
JS — As taxas moderadoras não valem nada, mas para alguns sectores da sociedade portuguesa o actual valor das taxas já pesa na carteira. Globalmente, não chegam a 1% do orçamento da Saúde e então temos de perguntar para que foi toda aquela discussão. Se não moderam, porque como se vê as Urgências continuam cheias, só há uma explicação: as taxas moderadoras são a antecâmara dos pagamentos.

Exclusividade no SNS

«TM» — O BE defende também a exclusividade dos médicos que trabalham no SNS…
JS — Isso é outro problema. Não tenho muitas dúvidas de que o SNS tem de caminhar para a exclusividade de todos os seus profissionais como regra. No que não estamos de acordo é que isso seja feito por despacho ou decreto, isto tem de ser conseguido, têm de se criar condições de trabalho, remuneração e de carreira que fixem os profissionais.
«TM» — E acredita que isso é possível, no quadro actual de falta de médicos e de uma pirâmide etária médica muito envelhecida?
JS — Perfeitamente. Aliás, o que não percebo é por que o ministro caminha ao contrário. Correia de Campos fez recentemente um convite público à acumulação, e quando afirmou que vai reduzir os horários do sector público para os senhores doutores poderem ir trabalhar para o privado estamos ao nível do sacrilégio. Penso que deve ser exactamente ao contrário. É óbvio que há áreas em que a exclusividade iria causar dificuldades, mas nós não temos já dificuldades em Urologia, Dermatologia, Reumatologia, Oftalmologia, etc.? Um grande número de consultas e exames destas especialidades já é feito fora do SNS, pago pelo Estado, claro.
«TM» — Mas ao apostar na exclusividade e ao dizer aos médicos que ou ficam ou saem definitivamente do SNS, o que acha que vai acontecer?
JS — Não creio que tenhamos de pôr as coisas em termos do género: «a partir de dia 1 acabou!».
É também preciso dizer que os profissionais de saúde em Portugal são mal pagos, aliás, são pessimamente pagos no serviço público e optimamente pagos enquanto prestadores privados. É preciso pagar mais aos profissionais.
É claro que a exclusividade não se paga apenas pelas remunerações, embora elas sejam o essencial. Acho que o temor em relação à exclusividade é infundado. Onde estão os oftalmologistas do hospital de Faro? Ninguém lhes impôs exclusividade e eles já foram embora.
Hoje em dia, os que quiseram ir embora foram, e mais: o Estado até lhes garante o lugar, através das licenças sem vencimento, o que é outra vergonha.

Maria F. Teixeira / Susana Ribeiro Rodrigues

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Carreiras diferentes

«TM» — O BE defende a manutenção das carreiras?
JS — Sem dúvida.
«TM» — Não acha que estas já acabaram, como vaticinam alguns?
JS — Não acabaram, há é uma situação nova. A política de recursos humanos do Governo basicamente assenta no fim dos vínculos e é preciso encontrar uma solução. Se o Governo, que tem maioria absoluta, decidiu assim, vai ser difícil reverter esta situação, que já existe hoje. Contudo, admito que é possível manter a estrutura das carreiras mesmo num quadro contratual diferente, isso já existe noutros países. As carreiras é a garantia, para os portugueses, de que os profissionais têm a formação devida. Acho que elas têm tanto mérito que dificilmente serão postas em causa, mesmo que seja necessário adaptá-las a um quadro em que o vínculo profissional seja de outra natureza.

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BE quer retomar eleição do director clínico

O BE conta ainda apresentar até ao final do ano três propostas de lei relacionadas com a Saúde. Um deles visa a eleição interpares das direcções clínicas e de enfermagem. «Vamos muito em breve propor uma lei que retome a eleição do director clínico e do enfermeiro-director. Já foi assim. Aliás, foi Correia de Campos que acabou com isso», disse João Semedo, que não tem dúvidas de que esses cargos estão hoje politizados.
O estatuto das unidades locais de saúde (ULS) é outra das preocupações do BE, que vai propor um modelo mais abrangente, que inclua estruturas, como as autarquias, os bombeiros e outras que intervêm na prevenção e prestação de cuidados de saúde. Além disso, o BE sugere uma organização diferente das ULS. «Na prática, os hospitais mandam nos centros de saúde, e penso que os profissionais reagem mal a isso», defendeu o deputado.
Depois, o BE pretende apresentar uma proposta sobre a contratualização, ferramenta que considera «positiva», mas que deve ter «regras».

TM 1.º CADERNO de 2007.10.15
0712611C04107MF41B

Carreiras Médicas (TempoMedicina)

Ordem dos Médicos e sindicatos chegam a (algum) consenso
«Novas» carreiras terão quatro graus
A Ordem e os sindicatos médicos chegaram a um entendimento parcial sobre um regime de carreiras universal, que deverá assentar em quatro graus distintos. Apenas não parece haver consenso em relação à altura em que a proposta deve tomar a sua forma final e ser apresentada, aos médicos e ao Governo.
Serão quatro os graus de carreira que a Ordem dos Médicos (OM) passará a reconhecer. A proposta resulta da ideia, consensual entre OM e sindicatos, de que é preciso criar um sistema de carreiras autónomo, que abranja todos os médicos independentemente do seu local de trabalho. A Federação Nacional dos Médicos (Fnam) e o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) também concordam que a competência de reconhecer estes graus, apenas de cariz técnico-científico, deve permanecer nas mãos da Ordem e por isso a proposta começa agora a ganhar forma.
Como explicou ao «TM» o bastonário, Pedro Nunes, deverão existir quatro graus — o de médico não especialista (que corresponde aos internos), o de especialista, o de médico graduado e o de chefe de serviço. Embora Mário Jorge Neves, presidente da Fnam, seja cauteloso e diga que em relação a este aspecto «não há nenhuma decisão fechada», e Carlos Arroz, do SIM, discorde da criação de um grau para os internos (ver caixa), parece haver a intenção de seguir o esquema actualmente existente e consonância quanto à importância de ultrapassar os entraves que existem à manutenção e funcionamento do regime das carreiras. «Apesar de hoje haver carreiras, estas estão bloqueadas por não haver abertura de concursos para progressão. Por outro lado, há um manifesto desinteresse dos hospitais EPE pelas carreiras, o que pode ter consequências nefastas», advertiu Pedro Nunes.
Agora que está definido o «esqueleto geral», falta estabelecer os conteúdos funcionais destes quatro graus. Um trabalho que vai ainda exigir muito esforço às várias partes e que, na óptica do bastonário, só deverá ser apresentado e colocado à consideração dos médicos em Janeiro ou Fevereiro do próximo ano. Pedro Nunes frisa que «a Ordem reconhece que os sindicatos são fundamentais neste processo e não fará nada contra nenhum deles», mas considera que a proposta não deve ser discutida antes da realização das eleições da OM, em Dezembro próximo. «Este é um assunto demasiado sério para se prestar a ser contaminado por oportunismos eleitorais», argumentou o bastonário e candidato a um segundo mandato.

Timing político não deixa alternativa

Mas outro entendimento tem Mário Jorge Neves, que lembra a urgência de um entendimento ao nível médico devido aos timings impostos pelo Governo. O dirigente sindical sublinha que há uma lei da Assembleia da República que determina que a revisão das carreiras, vínculos e salários da Administração Pública seja feita até ao final deste ano, pelo que avisa: «O calendário institucional, definido pelo poder político, não se compadece com o calendário eleitoral da Ordem dos Médicos.» Para Mário Jorge Neves, as eleições na OM não podem condicionar a procura de um consenso entre as estruturas da classe, até porque se os prazos definidos forem cumpridos, os sindicatos serão chamados pelo Governo para começar a negociar a revisão da lei das carreiras médicas dentro de «três semanas ou, no máximo, um mês». «Admito que possa haver alguma preocupação com a não interferência do processo eleitoral numa matéria como esta, mas este limite temporal foi definido pelo poder político e por isso não há outra hipótese», acrescentou, ao «TM», o presidente da Fnam.
Não obstante, o dirigente fez questão de evidenciar a «preocupação mútua em encontrar soluções bem fundamentadas e que possibilitem consensos alargados», patente nas três reuniões e vários contactos de trabalho havidos entre a OM e a federação sindical que representa.

SIM também entra

Depois de já estar a trabalhar com a Fnam há algum tempo no projecto de carreiras médicas «universais», a Ordem dos Médicos conseguiu finalmente trazer para a mesa das negociações o SIM (que até agora se recusou a participar, ver edições do «TM» de 25 de Junho e 16 de Junho). A reunião entre os elementos do Conselho Nacional Executivo (CNE) e três dirigentes do SIM decorreu no passado dia 9 e, segundo Pedro Nunes, foi muito frutífera. «Houve uma consonância de posições muito significativa com o SIM, como aliás já havia com a Fnam», garantiu.

Maria F. Teixeira

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«A linguagem dos médicos será uniforme»

O Sindicato Independente dos Médicos é menos entusiasta em relação a um possível novo regime de carreiras e prefere lutar pela preservação do modelo existente. «Os médicos têm carreiras e muito bem estruturadas», sublinhou Carlos Arroz, secretário-geral do SIM. O dirigente concorda com a intenção de criar um regime que abranja todos os clínicos, sejam do sector público ou privado, embora discorde da ideia de atribuir aos internos um grau de carreira. Além disso, frisa que a iniciativa de alterar o regime de carreiras vigente deve pertencer ao Governo. E, apesar das divergências, Carlos Arroz acredita que quando isso acontecer os médicos falarão a uma só voz. «Embora respeitando a individualidade de cada estrutura, tenho a certeza de que a linguagem dos médicos será uniforme», afirmou.
A Fnam também defende uma consonância de posições e por isso congratulou-se com a «entrada» do SIM no projecto de definição de um regime de carreiras assente na Ordem. «Tudo aquilo que puder contribuir para o consenso entre os médicos é muito bem-vindo e saudado», disse Mário Jorge Neves.

TM 1.º CADERNO de 2007.10.15
0712611C02107MF41H

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Os pobres que paguem a crise!

Os pobres que paguem a crise!*
Artigo do Prof. José Manuel Silva**

«Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão»
Vergílio Ferreira

Encontrei esta citação num livro de Joaquim Sarmento, Fragmentos e Paixões, em cujo prefácio Manuel Alegre escreveu: «Há um homem (…) que gosta das suas raízes genuínas, mas é um cidadão do mundo (…) preocupa-se, interroga-se, um homem que, imagine-se, é socialista por convicção, o que é altamente inconveniente neste tempo de capitalismo global e selvagem.»
Revejo-me em Vergílio Ferreira, em Joaquim Sarmento, em Manuel Alegre e tantos outros que escrevem contra a injustiça, contra a degradação, contra o situacionismo, conta o capitalismo selvagem, contra o erro. Revejo-me em todos aqueles que têm a coragem de assumir posições contrárias ao politicamente correcto, de afrontar publicamente os poderes instituídos, de dizer não aos compromissos e aos ensurdecedores silêncios dos que comem as migalhas do poder.
Revejo-me em Alfredo Barroso, que na sua crónica do «Sol» (1-9-07), com o mesmo título deste editorial, não teve receio das frases fortes e, com todo o seu peso institucional, escreveu: «As grandes fortunas prosperam, tendo crescido 35,8% em relação a 2006»; «As diferenças de rendimentos entre ricos e pobres, em Portugal, atingiram uma dimensão inédita»; «Portugal é o país europeu que menos investe em Segurança Social»; «A perda de quaisquer estímulos ideológicos na luta política gerou um vazio ao nível das ideias, das convicções e dos princípios»; «Dizem as boas línguas que o Governo do engenheiro Sócrates tem feito “reformas muito corajosas”. Eu, que sempre fui má-língua, limito-me a perguntar: é preciso coragem para exigir aos pobres que paguem a crise?!».
Revejo-me em Diniz de Freitas («Diário de Coimbra», 10-7-07): «Ao contrário do que os actuais responsáveis da saúde proclamam, o custo e a qualidade podem melhorar em simultâneo»; «a tutela não só tem ignorado este princípio, mas agravou irresponsavelmente a situação ao destruir as carreiras médicas, um notável instrumento de ensino e formação, mas também de motivação e responsabilização»; de facto, assiste-se ao desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, que, apesar das suas imperfeições, atingiu uma honrosa 12.ª posição no concerto mundial, e testemunha-se a tessitura de um modelo de saúde virtual porque indefinível, abstruso porque ambíguo, incongruente porque desgarrado, casuístico e reactivo, e onde floresce, certamente por tudo isto, a pesporrência, a intimidação, a desorientação, a bajulação e a delação.
Revejo-me em António Arnaut («JN», 30-6-07): «Mas esquece os casos em que a existência de um médico num lugar isolado dá uma garantia psicológica às populações. E isso tem de se pagar, porque é também uma questão de coesão social. O Estado tem de suportar os custos da interioridade, como suporta os da insularidade.»
Revejo-me na seta para baixo do «Público», de 15-3-07: «Se fossem as populações, era de se lhes dar um desconto. Mas são os peritos da Comissão que sugeriu o fecho de alguns blocos de partos a dizer que há recomendações que não estão a ser cumpridas. Faltam médicos e equipamentos em algumas unidades que absorveram os partos das que encerraram. Não basta fechar, é preciso avaliar, senhor ministro. São os peritos que dizem…»
Poderia continuar quase indefinidamente na citação de insuspeitas vozes críticas da actual política de saúde. O espaço não mo permite.
Por tudo isto, é de salientar a desfaçatez com que o ministro da Saúde afirmou numa conferência organizada pela FLAD: «Não fazer nada seria a forma mais rápida de destruir o SNS» («Médico de Família», Junho 2007), quando a realidade mostra que a maioria das medidas por ele tomadas estão a acelerar irremediavelmente o arrasamento do SNS com a única preocupação de cumprir cegamente o orçamento, concentrar recursos afastando-os das populações mais desfavorecidas, transferir custos para os doentes e facilitar a implantação dos grandes grupos económicos. A este propósito são elucidativas as afirmações de João Silva Lopes, presidente do Montepio: «Hospitais privados só serão viáveis à custa do Estado» («VE», 28-08-07).
Nessa mesma conferência, Correia de Campos enumerou as suas três grandes prioridades: a reforma dos CSP, a rede de cuidados continuados e a sustentabilidade do SNS.
Que apreciações sucintas merecem estas prioridades?
-- A reforma dos CSP, não obstante a pureza dos objectivos, que sempre defendemos, e ter conseguido alguns avanços, enferma de problemas metodológicos graves, há muito detectados, que a têm atrasado de forma insustentável, com custos para o País.
-- A rede de cuidados continuados, apesar de financiada pelo dinheiro do euromilhões, demora e está a ser implementada de forma ineficiente, com reflexos negativos para os doentes, para os hospitais e para as Urgências.
-- A sustentabilidade (?!) do SNS está objectivamente a ser «conseguida» à custa da qualidade e funcionamento dos serviços e asfixia financeira das instituições.
Que comentários podemos fazer quando, no relatório clínico do internamento de um doente numa instituição hospitalar, no ano de 2007, os médicos são obrigados a escrever que o doente será chamado posteriormente para efectuar um medulograma pois não há agulhas de medulograma no serviço de Hematologia desse hospital?
Que dizer quando o ministro da Saúde pressiona os hospitais não para melhorarem e investirem em qualidade, mas unicamente para reduzirem as despesas e colocá-los a dar «lucro»?!
Que dizer dos obstáculos colocados ao real aumento da produtividade hospitalar, pois mais produção é mais despesa?
Que dizer quando concursos para aquisição de equipamentos e consumíveis são deliberadamente atrasados (com consequências para os doentes!) apenas para cumprir o orçamento?
Que dizer de um ministro que usa o relatório da reforma das Urgências apenas para acelerar o encerramento de SAP e Urgências hospitalares e não para abrir um único dos locais que deve abrir e equipar convenientemente os que precisam de ser equipados?
Que dizer de um ministro que até a facturação do seu Ministério, do Estado (!), entrega a empresas privadas, socorrendo-se de duvidosas contas a comprovar o «lucro»?
Que dizer de um ministro que se congratula com uma redução de 9,5 milhões na despesa do Estado com medicamentos nos primeiros sete meses deste ano, sabendo que os utentes viram o gasto com medicamentos crescer 92 milhões de euros?! («JN», 27-08-07).
Que dizer de um ministro que transforma SAP em SEP (serviços de enfermagem permanente), que quer transformar VMER em VEER (viaturas de enfermagem de emergência e reanimação), que quer retirar os médicos das equipas dos helicópteros do INEM, e que agora cria e nomeia o Chief Nursing Officer, uma espécie de representante dos enfermeiros nomeado pelo Governo português com um pomposo nome em inglês?!
Que dizer quando a imposição absurda do PRACE à Saúde, com despedimentos em série (eufemisticamente chamados de não renovações?), vai criar inultrapassáveis dificuldades às instituições de saúde com o encerramento de muitos programas, nomeadamente a nível da prevenção? Quem vai sofrer as consequências?
Que dizer de um ministro que alguns insistem em qualificar como grande especialista em Saúde (!?), que é um verdadeiro perito em «gaffes», como a da Ortopedia a quente ou a de que os doentes há mais tempo em lista de espera cirúrgica talvez sejam inoperáveis?!
Que dizer de um ministro da Saúde que promove uma reforma dos CSP assente nos agrupamentos de CS enquanto implementa e promete novas unidades locais de saúde?
Que dizer de um ministro que, prenhe de avanços e recuos, cria e mata o Centro Hospitalar da Beira Interior, eternizando uma indefinição que está a prejudicar os três hospitais envolvidos? Será esse o objectivo?!...
Mais uma vez poderia continuar quase indefinidamente na chamada de atenção dos cidadãos para as consequências dos erros da actual política da Saúde. Infelizmente, o espaço não mo permite.
A verdade é que os profissionais da saúde sentem cada vez com mais acuidade os graves problemas que estão a afectar a qualidade e funcionalidade do SNS, com falta de recursos físicos, humanos e financeiros a muitos níveis. Os principais prejudicados serão os doentes, porque a filosofia do SNS está a ser destruída activamente.
Será vergonhoso e um profundo despudor se o ministro da Saúde voltar a afirmar a sua alegria pelo cumprimento do Orçamento, porque quem está bem informado sabe que isso está a ser conseguido essencialmente à custa de um emagrecimento artificial e comprometimento da qualidade do SNS.
A verdade é as «grandes reformas» da Saúde pouco mais têm feito do que exigir aos pobres que paguem a crise!
Muito provavelmente este ministro será remodelado lá para Janeiro de 2008. Não vai deixar saudades. Esperemos que, ao mudar o ministro, também mude a política de Saúde!

*Texto publicado como «Editorial» no Boletim Informativo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (série III, n.º 30)

** Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos

Texto publicado, em exclusivo, em TM ONLINE de 2007.10.08
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