terça-feira, 6 de maio de 2008

A avaliação (TM)

A avaliação
Artigo de Carlos M. Costa Almeida

Dias depois da tomada de posse da nova ministra da Saúde, um responsável do Ministério anunciava que estavam a trabalhar na criação de uma grelha para avaliação dos conselhos de administração dos hospitais EPE. Nada nos poderia dar mais satisfação: é mais que tempo, e mais que necessário, que pessoas a quem foram confiados milhões e milhões de euros dos cofres do Estado possam ser correctamente avaliadas pelo destino que deram a todo esse dinheiro.
De imediato, alguns presidentes de conselhos de administração vieram clamar, à laia de aviso, que não era fácil serem avaliados, até porque estavam dependentes dos profissionais que têm a trabalhar nos «seus» hospitais. E isso é verdade, essa dependência é um facto, e é positivo que pelo menos alguns deles a reconheçam, embora não se saiba que influência tal facto tem na sua actuação administradora. Mas a verdade, também, é que um responsável tem de assumir as suas responsabilidades e não esconder-se atrás dos seus subordinados, imputando-lhes a culpa de um eventual fracasso (ao mesmo tempo que, se calhar, fica sozinho com os louros quando as coisas correm bem). Napoleão Bonaparte ganhou muitas batalhas à custa dos seus soldados, os quais no entanto ficaram globalmente na história apenas por serem os seus soldados. E quando foi vencido em Waterloo, mais uma vez foi ele quem perdeu, não os seus soldados, apesar de historicamente se saber que essa derrota se ficou a dever em grande parte à não execução cabal e atempada de um plano de batalha confiado ao comandante de um dos seus regimentos. Mas foi ele quem foi derrotado, e destronado, e preso, e que morreu no exílio. Não o seu exército, que apenas perdeu o chefe.

Prosaicamente

E isto faz todo o sentido, porque a responsabilidade da organização de um exército, da sua estratégia e da táctica no combate pertencem por inteiro ao comandante-em-chefe e ao seu estado-maior. Como lhes pertence também a responsabilidade da nomeação das chefias intermédias, a sua coordenação, o assegurar-se de que os soldados aceitam essas chefias e compreendem as suas ordens e indicações. E, finalmente, por último mas com certeza não em último, a de saber motivar todo o exército, entusiasmá-lo, galvanizá-lo, como Napoleão fez ao conseguir que os seus soldados quisessem até morrer por ele.
É claro que para se chegar à avaliação dos hospitais EPE não é preciso ir tão longe, e tão alto. Bastará ficarmo-nos prosaicamente pela comparação com as equipas de futebol, em que se os jogadores não gostarem do treinador, ou este os não motivar adequadamente, ou a direcção do clube não lhes pagar o indicado, pura e simplesmente correm, correm no campo mas realmente não jogam e não ganham. E a solução não é substituir a equipa.
Quando os lugares de chefia intermédia num hospital estavam dependentes de uma carreira, de uma sucessão de exames e concursos, de provas dadas, os conselhos de administração podiam queixar-se de que todos aqueles júris eram constituídos por incapazes e que eles, que detinham a capacidade de saber «achar» quem eram os melhores, infelizmente não o podiam fazer e tinham de conviver sofredoramente e trabalhar com os que chegavam ao topo da carreira. Mas essa possibilidade de assacarem culpas aos concursos desapareceu-lhes, uma vez que as nomeações para os vários lugares de chefia e de responsabilidade intermédia estão-lhes agora totalmente nas mãos.
Mas é verdade que não é fácil avaliar o trabalho de um conselho de administração de um hospital. É que não se pode olhar simplesmente para a frieza de números expostos em quadros de contabilidade mais ou menos criativa, como não é bastante saber quantas «cirurgias» foram feitas ou quantos doentes foram ao hospital ver o médico. O equilíbrio ou desequilíbrio financeiro de um hospital estatal é tão-somente uma parte dos problemas de uma instituição que tem como objectivos a saúde de uma população, o seguimento e acompanhamento de muitos dos que estiveram doentes, a formação pós-graduada de profissionais, o ensino de alunos, a investigação para se conseguirem melhores -- mais eficazes, mais eficientes e mais baratos -- métodos de diagnóstico e de tratamento. Tudo isto está relacionado, para além de condições materiais, com uma enorme equipa de profissionais cujo trabalho competente, coordenado e entusiástico é que pode fazer render o dinheiro aplicado.

O difícil e moroso

Construir hospitais e equipá-los é fácil, basta ter dinheiro. O difícil e moroso é construir equipas, de médicos e outros profissionais, competentes e eficientes, que desempenhem a função que ao hospital cabe e justifiquem a sua existência e os seus custos, contribuindo ao mesmo tempo para a formação de outros e para uma melhoria nos cuidados de saúde prestados à população. Ora o que se tem vindo a passar nalguns hospitais-empresa é que, em vez de manterem os bons profissionais, os mais experientes e sabedores, estimulando-os a fazer mais e melhor trabalho, parece antes fazerem um esforço (voluntário ou por inépcia) para os afastar, para os empurrar para fora do hospital, para a actividade privada, seja por reforma antecipada ou licença sem vencimento, seja simplesmente por desmotivação e desinteresse em relação a uma administração hospitalar que se mostra incapaz. Quando médicos muito diferenciados, líderes de opinião, que durante várias dezenas de anos trabalharam com afinco na instituição e contribuíram para a sua qualidade clínica, se vão embora dela muito antes do tempo, algo está mal. E será de inquirir o conselho de administração sobre o que se passou, e saber o quanto é ele próprio responsável por essas saídas -- eis um factor de avaliação da sua actividade.
Enquanto do ponto de vista económico-financeiro o Ministério da Saúde mantém algum controlo, no resto os conselhos de administração dos hospitais EPE são totalmente autónomos, não prestam contas a ninguém, e daí a sua absoluta responsabilidade.

Promoção de minhocas a jibóias

Em termos de recursos humanos tem-se assistido nalguns a uma desierarquização catastrófica, com promoção de minhocas a jibóias, aparentemente esperando-se que essa simples promoção trouxesse as qualidades e a capacidade que os promovidos não têm, nunca tiveram, nem nunca hão-de ter. É claro que os contemplados nessa campanha promocional, guindados a cargos e funções que nem nos seus mais desvairados sonhos esperaram algum dia possuir, tudo farão para os conservar, sobretudo nunca contrariando quem os nomeou. E parece ter sido esse o objectivo. Com a perversão acrescentada de serem os menos qualificados a avaliar e classificar os mais qualificados. Se as coisas correm mal, se a qualidade do serviço desaparece, se a formação é posta em causa, se começa a haver problemas com os doentes, então a responsabilidade é do conselho de administração e é com certeza um factor de avaliação a ter em conta. Sobretudo se os próprios doentes e os médicos em formação se começarem a queixar oficialmente e a idoneidade formativa for posta em causa.
Outro aspecto a avaliar é a organização imposta ao hospital, já que a reorganização ou desorganização estabelecidas são totalmente da responsabilidade do conselho de administração, como as administrações regionais de Saúde e o próprio Ministério da Saúde afirmam quando questionados sobre uma ou outra situação particular e mais gritante. A actual lei de gestão hospitalar permite-o, mas há que pedir responsabilidades a quem as tem. Estruturas hospitalares modificadas e pouco operacionais, resmas de administradores pululando nos corredores do hospital, procurando ganhar dinheiro com uma instituição que existe para tratar doentes -- que é o que os médicos e os outros profissionais de saúde fazem --, tudo deve ser considerado. Qual o aumento em gastos administrativos, incluindo ordenados de administradores?
Quando se avalia a gestão de um hospital há que saber também o que conseguiu fazer com o que o hospital possuía, nomeadamente em capital humano e em tecnologia e know-how. Há hospitais do Estado geridos como empresas em que tudo isso tem sido malbaratado, eu diria mesmo desbaratado, sobretudo em médicos bem preparados e competentes. Ter capacidade de tratar doentes dalgumas patologias, até frequentes e cada vez mais frequentes, e simplesmente afastá-los, desperdiçando a capacidade instalada ao longo de dezenas de anos, apenas com o intuito pequenino de poupar dinheiro e transferir essa despesa para o vizinho, é com certeza também um factor de avaliação. Procurar resolver os problemas financeiros locais de um hospital estatal sem querer saber da saúde regional ou nacional não é por certo positivo, e deve contar num score de capacidade de gestão hospitalar.

Fundamental

Em suma, e para concluir, é fundamental avaliar a actividade dos conselhos de administração dos hospitais EPE, e rapidamente. Essa avaliação não é fácil, porque é complexa e deve ser feita sob múltiplos aspectos, para além do económico-financeiro. Há hospitais com as contas eventualmente certas -- outros nem isso -- e destruídos por dentro, e o Ministério da Saúde, que empatou lá o dinheiro que é de todos nós, não sabe. É altura de querer saber. Há aspectos muito mais importantes do que o económico-financeiro, porque as consequências dos erros aí cometidos levarão muito mais tempo a ser corrigidas e terão muito maior impacte negativo no País, para além de no próprio hospital. Mesmo no campo financeiro, porque ao fim e ao cabo gastou-se dinheiro para se cometerem os erros.
Mas entenda-se é que a dificuldade de avaliar a actividade dos responsáveis não reside nos profissionais que trabalham no hospital. Esses, pelo contrário, deveriam ser ouvidos: para saber o que pensam e que futuro antevêem para a instituição, e se estão contentes e a trabalhar a par com o seu conselho de administração ou, pelo contrário, apenas esperando, senão desejando e pedindo a Deus, que ele seja substituído. Este deveria ser outro factor na grelha de avaliação.

Presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar

Em exclusivo, em TEMPO MEDICINA ONLINE de 2008.05.06
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sábado, 3 de maio de 2008

MS tem «profundo desconhecimento» sobre carreiras

Mário Jorge Neves denuncia em conferência de Imprensa
MS tem «profundo desconhecimento» sobre carreiras
Dirigentes da Federação Nacional dos Médicos (Fnam) e do Ministério da Saúde (MS) realizaram uma reunião de trabalho, no âmbito da negociação da nova lei de vínculos, carreiras e remunerações da administração pública, na qual os médicos, em princípio, vão figurar como um corpo especial. Mas essa reunião, nas palavras do presidente da estrutura sindical, Mário Jorge Neves, só serviu para «aprofundar o quadro de preocupações» em relação à matéria. É que, diz, ali ficou a nu o «profundo desconhecimento» que a delegação com quem se reuniu revela em relação ao «funcionamento das instituições de saúde e às carreiras médicas».
O responsável explicou, em conferência de Imprensa ocorrida a 29 de Abril, nas instalações do Sindicato dos Médicos da Zona Sul, que «foram produzidos comentários» no sentido de se considerar «uma só categoria nas carreiras médicas», sendo os cargos hierarquicamente superiores preenchidos através de nomeação. Além disso, Mário Jorge Neves denunciou que, face à proposta da Fnam para que exista uma «clara separação» entre carreira técnica e científica e cargos de gestão, a resposta que ouviu foi a de que quando se vai a uma Urgência «pouco importa que o médico seja especialista ou chefe de serviço». E isso, na profissão médica, «não é indiferente», afirmou o dirigente sindical.
Esta reunião, conforme informou Mário Jorge Neves, foi marcada a 1 de Abril, na audiência que a Fnam teve com a ministra da Saúde, Ana Jorge, e na qual a governante indicou não ter ainda qualquer proposta negocial. Mas conforme sublinhou o sindicalista, a 10 de Abril, quando se realizou a reunião de trabalho, «a delegação ministerial continuava a não dispor de nada». Além disso, o responsável fez notar que o elenco de dirigentes do MS que compareceu à reunião sobre a negociação das carreiras médicas «não incluía nem ministra, nem secretários de Estado».
«Tempo Medicina», registe-se, perguntou pela terceira vez ao Ministério em que fase está este processo e, também pela terceira vez, não obteve qualquer resposta.

Sindicato exige calendarização

O comunicado da Fnam dá conta de que a situação suscita «fortes apreensões e exige imediata clarificação». E isso só pode ser feito através do «estabelecimento de um calendário negocial» que permita a «adequada abordagem da revisão das carreiras médicas». Até porque, frisou Mário Jorge Neves, os quatro meses que restam para a conclusão de uma proposta «começam a ser um período de tempo curto». Por isso, no comunicado é indicado que os responsáveis da Fnam esperam que a «morosidade» do processo «não signifique a tentativa posterior de impor um número mínimo de reuniões» que sirvam apenas de «mera encenação negocial destinada a consumar a subversão e a própria destruição das carreiras médicas».
A conferência de Imprensa, em que também estiveram presentes os dirigentes Sérgio Esperança, João Valente, Merlinde Madureira e Bernardo Vilas Boas, serviu igualmente para divulgar as preocupações da Fnam relativamente ao atraso da implementação do modelo B nas unidades de saúde familiar e à demissão de membros da Unidade de Missão para os Cuidados de Saúde Primários (ver também página 2), assim como para reiterar as preocupações com o «desmoronamento» dos serviços públicos de Saúde.

S.R.R.

TEMPO MEDICINA 1.º CADERNO de 2008.05.05
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domingo, 13 de abril de 2008

carreiras médicas

O que os médicos querem para se fixarem em hospitais do Interior
Garantia de projecto profissional é o maior incentivo
Rui Guimarães diz que hospitais do sector público não oferecem nem segurança contratual, nem incentivos financeiros. Por sua vez, Carlos Costa Almeida frisa que saúde e formação não podem estar nas mãos de «assalariados a prazo».
A valorização das carreiras médicas parece ganhar terreno aos incentivos financeiros quando se fala de condições para a fixação de médicos nos hospitais mais carenciados em mão-de-obra. O presidente da Associação dos Médicos de Carreira Hospitalar (APMCH), Carlos Costa Almeida, resume a ideia ao afirmar que «os médicos não querem só ganhar dinheiro, querem também realizar-se do ponto de vista profissional». Na sua opinião, estes trabalhadores da saúde «querem acima de tudo ter condições de trabalho» e «ver o seu trabalho respeitado e reconhecido».
Rui Guimarães, presidente do Conselho Nacional do Médico Interno (CNMI), representa os médicos num outro estádio da sua vida profissional, mas alinha pela mesma ideia. Atendendo a que, segundo informação do Público que não foi possível confirmar em tempo útil com a Administração Central do Sistema de Saúde, das 115 vagas abertas no concurso em Fevereiro deste ano apenas 10 foram preenchidas, o responsável indicou, em declarações ao «Tempo Medicina», que um dos passos a dar seria a «reestruturação das carreiras médicas». Para o anestesista, é essencial que os médicos «sintam que vai haver progressão, que têm alguma margem de segurança» na sua ligação com o hospital.
Esta ideia parece ser partilhada pelo bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes. Em declarações prestadas ao nosso Jornal, à margem do Dia Mundial da Saúde, a 7 de Abril, veio reiterar que mais do que «incentivos de natureza financeira», os médicos pretendem que se olhe «para o que é a sua cultura, as suas relações hierárquicas, as suas procuras de progresso».
Apesar disso, Rui Guimarães não negou que outra das coisas que poderiam aliciar os médicos seria «dar os mesmos incentivos financeiros» que são atribuídos às empresas de recursos humanos que prestam serviços nos hospitais aos profissionais contratados directamente pela unidade hospitalar. Para Rui Guimarães «é ridículo» os profissionais que «são da casa» e que, ao contrário dos médicos colocados através de empresas, «dão a cara todos os dias», não poderem, por imperativos legais que resultam do facto de serem do sector público administrativo (SPA), receber os mesmos incentivos.

Os motivos que explicam a degradação

O presidente do CNMI afirmou que um dos grandes entraves à ida dos jovens médicos para esses hospitais se prende precisamente com os constrangimentos gerados pelo facto de estes pertencerem ao SPA. É que «a máquina do Estado e os concursos administrativos estão obsoletos». Isto porque os concursos públicos «arrastam-se durante muito tempo», ao ponto de o concurso aberto em Fevereiro ser para os jovens que acabaram a especialidade em Junho ou Julho de 2007. Neste espaço, diz Rui Guimarães, «obviamente que um clínico é aliciado» para outras unidades de saúde.
A esta situação junta-se o facto de os médicos quando estão em formação terem um «ordenado superior ao que é oferecido quando passam a especialistas nestas vagas carenciadas». E desta forma «é muito difícil fixar as pessoas». O responsável do CNMI indicou ainda que os médicos desses hospitais têm «durante três anos» as mesmas condições de um profissional que faça parte do quadro da função pública, mas «findo esse período, a pessoa fica desvinculada», a não ser que se abra um concurso. Contudo, «os concursos para a função pública estão — a maior parte — congelados e cancelados».
Para Carlos Costa Almeida é a desestruturação das carreiras médicas o principal motivo apontado para a degradação das condições nos hospitais periféricos. «Quando a evolução dos especialistas se fazia dentro de uma carreira», frisou o médico, aqueles hospitais conseguiam ter «praticamente a mesma capacidade técnica e humana dos hospitais centrais». E isso, nas suas palavras, atraía «profissionais mais capazes e mais ambiciosos do ponto de vista técnico-profissional». E foi por estas razões que o cirurgião de Coimbra afirmou ao «TM» que «a saúde e a formação médica nos hospitais públicos não podem estar baseadas em assalariados a prazo», para os quais a «motivação será apenas ganhar mais dinheiro».

Susana Ribeiro Rodrigues

Alguns privados são «mais cativantes»

A «cultura» dos médicos parece ser algo a que os privados tendem a estar mais atentos. Conforme indicou o presidente do CNMI, Rui Guimarães, «alguns privados têm sido mais cativantes» do que o sector público. Para o responsável, a «imagem do hospital, o marketing que [os privados] fazem, os meios de diagnóstico que têm ao dispor da população, a maneira como se organizam», têm cativado muitos jovens médicos. E apesar de o responsável dizer que não se pode «generalizar» a noção de que os privados são melhores do que os públicos, não deixou de frisar que há «hospitais privados a quererem investir na formação», ao mesmo tempo que hospitais públicos estão a «querer reduzir» essa função por causa dos custos.

TEMPO MEDICINA 1.º CADERNO de 2008.04.14
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segunda-feira, 3 de março de 2008

Medicina de Urgência como especialidade - TM

Medicina de Urgência como especialidade
Artigo de Nelson Pereira*

Contrariamente ao que muitos pensam, eu, pelo meu lado, entendo que não se tem discutido suficientemente a problemática da necessidade da criação da Medicina de Urgência como uma «nova» especialidade.
Como em muitos dos nascimentos de novas especialidades, este está a ser precedido de polémicas, «jogos do empurra», movimentações de “lobbies”, que fazem com que uma evolução natural organizativa da ciência médica não se desenrole como uma gravidez normal culminando num parto natural (sem dor), mas antes como uma gravidez de risco que necessariamente vai terminar num parto distócico, mas que se espera sem complicações “major” para o recém-nascido.
Porque, há que ser claro, não estamos a falar de novas doenças ou novas técnicas diagnósticas como o cerne desta nova especialidade, mas antes de uma estratégia organizativa (e de uma estratégia de abordagem dos doentes) que deve ter um corpo de médicos com uma preparação específica para o efeito. Uma preparação que passa certamente por uma visão centrada na rápida exclusão (e tratamento) de situações life-saving, mas também na identificação de outras condições que precisam de orientação diagnóstica e terapêutica, imediata ou diferida, e que pode ser providenciada por si ou por outros, dependendo da condição patológica específica e da condição organizativa do serviço onde se insere. Além disso, a Medicina de Urgência é tida como contendo em si mesma a lógica da organização dos sistemas de emergência pré-hospitalar e intra-hospitalar, numa visão que vem desde 1991 numa declaração da International Federation for Emergency Medicine.

Disciplina abrangente

Mas a Medicina de Urgência não pode, ou não deve (sobretudo de forma propositada), ser confundida com Medicina de emergência. A primeira (o verdadeiro desígnio) compreende a segunda, e é uma disciplina abrangente que se dedica a todo o espectro da prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças ou traumas que se apresentam com carácter agudo e urgente.
Se caminharmos para a solução mais fácil da criação da especialidade, ou ainda mais fácil da subespecialidade, de Medicina de emergência (capaz de acalmar os ânimos de anestesistas e internistas), vamos deixar o panorama real dos nossos serviços de Urgência exactamente onde estão. Ou seja, com áreas de tratamento de doentes emergentes (felizmente) cada vez mais organizadas, e com áreas de tratamento de doentes urgentes cada vez mais desorganizadas, com profissionais tantas vezes sem diferenciação, e outras tantas sem vínculo, fazendo o que a maior parte dos médicos não aceita fazer e fazendo muitas vezes menos bem. Na verdade, é neste local (crítico) que se joga o sucesso organizativo de um serviço de Urgência. É aqui, por exemplo, que escapam os diagnósticos menos evidentes ou que se dão as altas que vão condicionar maior número de reinternamentos.
E não estamos a reinventar a roda: a especialidade de Medicina de Urgência existe nos EUA desde 1979, existe formalmente em nove países da UE e até a vizinha Espanha, numa declaração do seu Ministério da Saúde já no mês de Fevereiro de 2008, aceitou dar os passos necessários para o seu reconhecimento.
Por outro lado, se bem que é possível concordar que tem a Medicina Interna actualmente um dos melhores “curricula” na preparação para esta área de actividade, sendo a Medicina de Urgência uma especialidade que se movimenta na abordagem de doentes do foro «médico», «cirúrgico» ou traumatológico, ela fica, até por definição, deslocada do desejável.
Na verdade, a Medicina Interna tem sido a grande opositora do nascimento desta nova especialidade, porque entende que de alguma forma corre o risco de ser «afastada» dos serviços de Urgência, o que é visto por alguns como o «último reduto» onde é, ainda, líder de processos. Mas os verdadeiros «redutos» da Medicina Interna são certamente a gestão do todo do doente internado com patologia aguda, complexa ou multidisciplinar e a gestão diagnóstica dos doentes. Por isso, entendo que todos os internistas devem centrar a sua «luta» na procura de uma organização departamental dos serviços de internamento da área «médica» em que eles são os gestores de TODOS os doentes, independentemente do foro a que respeite o seu diagnóstico principal.
Há, assim, dois grandes desafios a vencer na próxima década. Por um lado, uma aposta clara no internista como gestor do doente internado, por outro, uma aposta igualmente clara no urgencista como gestor do doente do serviço de Urgência. Seremos, assim, capazes de melhorar os cuidados prestados quer num lado quer no outro, e significa que estamos a pensar a Saúde de uma forma centrada no utente, condição absolutamente necessária para que existam verdadeiros ganhos.

*Ex-director clínico do INEM

Título e subtítulo da responsabilidade da Redacção

TEMPO MEDICINA ONLINE de 2008.03.03
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sábado, 9 de fevereiro de 2008

Transplantação hepática e Ordem dos Médicos - TM

Transplantação hepática e Ordem dos Médicos
Artigo de Carlos Alberto Godinho C. Mesquita*

A transplantação hepática voltou a ser notícia de primeira página e, mais uma vez, pelos piores motivos. Considero isto inaceitável e entendo ser meu dever contribuir para o equacionar de uma problemática que, enquanto cirurgião, acompanho há já 20 anos e que, apesar das aparências, continuará por resolver, se outras medidas não forem tomadas.
Não integrando, presentemente, por questões institucionais que me ultrapassaram, a equipa de transplantação hepática dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), o facto de ter participado em cerca de 10% dos transplantes ali efectuados permite-me ter uma opinião algo fundamentada acerca do que tem vindo a passar-se, sendo que já por diversas vezes, noutros locais e perante outras entidades, expressei a minha preocupação pela forma como estava a ser desenvolvido aquele programa.
Começo por chamar a atenção para um primeiro aspecto particularmente negativo: uma forma de estar e actuar num hospital público à margem de tudo o que é normal no âmbito da carreira hospitalar, traduzida, em última análise, por uma sistemática exclusão da generalidade dos internos de Cirurgia e dos cirurgiões mais novos, quando o desejável seria, precisamente, o contrário, até porque a idade média do grupo de colegas que integra a equipa ronda os 55 anos e até já foi mais elevada.
Não se compreende que um interno de Cirurgia Geral possa passar seis anos nos HUC sem participar ou, sequer, assistir a um transplante de fígado, quando é sabido tratar-se de uma actividade de enorme riqueza do ponto de vista formativo, desde as colheitas até ao transplante em si mesmo.

Os incentivos à transplantação

Não posso, em segundo lugar, deixar de concordar com os que consideram estar a causa de tudo isto nos chamados incentivos à transplantação, que não andarão longe dos cinco milhões de contos em 15 anos, distribuídos com base no princípio do pagamento por acto e de acordo com critérios que sempre escaparam ao conhecimento do comum dos mortais.
Não me parece que algo justifique, hoje em dia, num hospital público e face à grave situação que o País atravessa, que os transplantes continuem a ser pretexto para pagar a um pequeno grupo de forma principesca e milionária. Só o reconhecimento e correcção desta situação poderá contribuir, decisivamente, para que a transplantação hepática passe a decorrer num ambiente de maior normalidade institucional, maior humildade e menor truculência.
Também isto, no entanto, deve ser precedido de uma palavra da Ordem, exigindo do respectivo Colégio de Especialidade que saia da letargia que o tem caracterizado, se reorganize e se assuma como líder de todo um processo de desenvolvimento da Cirurgia Geral, o qual não poderá passar ao lado desta questão concreta, definindo modelos de actuação mais condizentes com os diversos tipos de resposta que são de esperar de hospitais de níveis diferentes.
A solução para os problemas actuais nunca deixará de ser transitória se não for encontrada num contexto de renovação global da dinâmica cirúrgica hospitalar, que tenha por pressupostos o respeito pelo direito dos profissionais e do povo deste país a uma actividade projectada para o futuro, da qual a Ordem dos Médicos não se pode alhear, sob pena de, também aqui, ficar a ver o seu campo de acção definitivamente ocupado por mais uma alta autoridade ou entidade reguladora!

A questão da colheita de órgãos

Questão intimamente ligada a esta é a das colheitas de órgãos, uma actividade que se cruza, inevitavelmente, com o dia-a-dia dos serviços e que necessita de ser desenvolvida, dinamizada, de modo a poder deixar de estar na exclusiva dependência das equipas de transplantação, libertando-as até, o mais possível, da mesma.
É público que o nosso país tem vindo a perder terreno nesta matéria, tendo passado, nos últimos anos, do segundo para o sexto lugar, no âmbito europeu, apesar da legislação particularmente favorável de que dispõe. Enquanto em Espanha se efectuam, por ano, cerca de 35 colheitas por milhão de habitantes, em Portugal os números andam próximos das 20, não estando os hospitais a aproveitar as suas reais capacidades. Em 2006, apenas metade dos hospitais portugueses habilitados para esta prática clínica a terá posto em campo e, em boa parte dos casos, com recurso a equipas vindas do exterior.
As deficiências são conhecidas, quer no que toca ao reconhecimento dos potenciais dadores, quer no que respeita à competência instalada para efectuar colheitas de órgãos, neste caso por óbvia falta de atenção à necessidade de dar este tipo de formação ao maior número possível de cirurgiões gerais.
Uma problemática, mais uma, a que a Ordem dos Médicos e o respectivo Colégio de Especialidade deviam dedicar mais atenção.
Conhecida que é a disponibilidade e interesse por este assunto da generalidade dos cirurgiões, em especial os mais novos, é fundamental que sejam dadas instruções precisas, por parte de quem de direito, no sentido de passarem estes elementos a ser sistematicamente informados e convidados a integrar as equipas de colheita, de maneira a que, num futuro que se deseja próximo, o possam vir a fazer de modo qualificado e de forma autónoma.

*Cirurgião dos Hospitais da Universidade de Coimbra

Subtítulos da responsabilidade da Redacção

TEMPO MEDICINA 1.º CADERNO de 2008.02.11
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sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Incongruência ou triste sinal dos tempos - Dr.José de Mesquita Montes - TM

Incongruência ou triste sinal dos tempos
A propósito de uma certa política de Saúde
Artigo de José de Mesquita Montes*

Carta aberta ao Senhor Ministro da Saúde, professor doutor António Correia de Campos

No decurso de 2006, cessou a minha carreira hospitalar, em virtude de ter atingido 70 anos, quando era director do Serviço de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano/Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE.
Passei à situação de jubilado a 19 de Novembro de 2006, após 45 anos de exercício de Medicina dedicados a servir o doente, onde quer que ele estivesse.
Uma trajectória longa, semeada de múltiplos escolhos e dificuldades, que sempre procurei ultrapassar com uma força de vontade férrea e um determinismo inquebrantável, sempre pautado pelo primado da ética e da deontologia da arte médica e pelo respeito integral pela pessoa humana.
Foi assim possível construir uma obra multifacetada e espalhada por diversos locais, onde tive oportunidade de trabalhar.
Quase sempre parti do estádio zero e, durante anos de intenso labor, tive o ensejo de idealizar, construir e estruturar obras e unidades, que foram perdurando ao longo dos anos.
Foram tempos de labor exaustivo, de que guardo gratas recordações que constituem hoje uma parte importante do meu acervo histórico que, como V. Exa. pode calcular, está profundamente estruturado e bem codificado, mas que infelizmente começa hoje a ser beliscado …
A caminhada começou, em 1959, com a conclusão do ciclo teórico de licenciatura, ainda na velha Faculdade de Medicina do Porto/Hospital Geral de Santo António.
A passagem para o Hospital de S. João, que acabava de ser inaugurado (em 23 de Junho de 1959), constituiu um marco fundamental na minha formação. Aí integrei o 1.º Curso Médico, que terminou o ciclo clínico (7.º ano) na instituição.
Esta transferência abriu-me novas perspectivas de uma Medicina em tudo diversa daquela em que havia sido iniciado, tendo de imediato a noção de que iria integrar uma geração que havia de modificar o panorama médico do Porto e também do País, no início dos anos sessenta.
Efectivamente, essas gerações contribuíram, de modo decisivo, para um novo caminhar da ciência médica e da prestação dos cuidados de saúde.
Tive a oportunidade de integrar o primeiro grupo de médicos do Serviço de Ortopedia do Hospital de S. João, dirigido pelo saudoso mestre, professor Carlos Lima, o primeiro catedrático de Ortopedia da universidade portuguesa.
Foram anos de aprendizagem intensa e formação qualificada, que levaram à construção da primeira escola de Ortopedia do País, a qual teve um papel determinante na história da Ortopedia nacional, que se havia tornado independente da Cirurgia Geral cerca de 10 anos antes.
Nesse tempo era tradição os assistentes dos grandes hospitais do Porto (ultrapassada a fase de formação e de diferenciação, que culminava com a obtenção do título de especialista pela Ordem dos Médicos) assumirem a orientação de um serviço num hospital regional.

Primeiras artroplastias totais da anca no País

Em 1968, e após ter cumprido cinco anos de serviço militar obrigatório, dos quais dois anos e meio em Angola, fui convidado pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia de Lamego para orientar o seu futuro Serviço de Ortopedia.
Aceite o convite, foi o idealizar e o estabelecer de uma unidade de Ortopedia e Traumatologia, separada da Cirurgia Geral, que como era habitual assegurava, até aí, alguns tratamentos da especialidade.
A estratégia delineada permitiu, ao fim de pouco tempo, a prática da quase totalidade dos actos de cirurgia ortopédica, com excepção da patologia tumoral óssea e casos complexos de cirurgia vértebro-medular, assegurando ainda, sempre que possível, a Urgência (de referir que residia no Porto e as estradas, em muitos troços, não passavam de caminhos pombalinos). Neste hospital foram realizadas as primeiras artroplastias totais da anca do País, em 1969.
Anos mais tarde, em 1972, assumi a coordenação de idêntico serviço no Hospital de D. Luís I, no Peso da Régua (minha terra natal).
Assim, as terras da região do Interior Norte do País -- a norte e a sul do rio Douro -- começaram a drenar os seus casos ortopédicos, ora para Lamego ora para o Peso da Régua, uma vez que não havia ortopedistas, quer no distrito de Vila Real quer em Bragança, existindo unicamente um no Hospital de Viseu.
Foram anos de intenso trabalho, liderando uma equipa coesa de colaboradores dedicados, pelo que o serviço à população era eficiente, de qualidade e, sobretudo, em tempo útil (não sendo necessário recorrer aos grandes centros, como infelizmente acontece hoje, com reduzida percentagem de doentes evacuados por insuficiência dos meios médicos).
Em 1977 retirei-me de Lamego e em 1984 do Peso da Régua, por razões de saúde, tendo a grande honra de legar dois serviços, para cuja fundação havia contribuído, perfeitamente aptos a prestar serviços válidos à população.
Os tempos passaram e criaram a «erosão» que V. Exa. conhece bem … mas disso falaremos mais adiante.

Ortopedia infantil

Paralelamente com a prática da Ortopedia do adulto, dediquei, desde a primeira hora, grande parte da actividade profissional à Ortopedia do indivíduo em desenvolvimento -- a Ortopedia infantil.
Tive a sorte de integrar, como já referi, o Serviço de Ortopedia do Hospital de S. João, o que me conduziu ao Hospital de Crianças Maria Pia, que na época tinha um papel relevante na assistência à criança.
Nesta instituição trabalhei cerca de 30 anos, ocupando todos os lugares da carreira hospitalar, o que me habilitou a desenvolver uma apreciável capacidade técnica neste domínio da ciência do aparelho locomotor.
A criação de um grupo de trabalho profundamente disciplinado e dedicado a este sector levou ao aparecimento de condições assistenciais até aí inexistentes e à divulgação, a nível nacional, de uma verdadeira e moderna Ortopedia infantil.
O intercâmbio de ideias e experiências com outros centros nacionais e até internacionais determinou, por sua vez, a formação de outros grupos de trabalho e sociedades científicas (portugueses e estrangeiros) vocacionados para o estudo, a divulgação e a investigação da Ortopedia infantil, cobrindo todos os aspectos desta subespecialidade.
Os resultados desta actuação tornaram-se rapidamente evidentes e daí a melhoria da qualidade da assistência à criança, atingindo-se os indicadores sanitários tão divulgados hoje em dia pelos nossos governantes.
Mas se a nível médico consegui atingir um lugar de destaque nesta área, quer a nível nacional quer internacional, foi inevitável o envolvimento na problemática da gestão do Hospital de Maria Pia.
Os anos oitenta foram extremamente relevantes para a minha prestação como gestor. A indigitação para director clínico, em 1984, levou a que fosse definida uma nova dinâmica para o hospital, que se pretendia fosse uma unidade de referência para a população com menos de 16 anos da região Norte. Nesse sentido, foi desenvolvido um detalhado programa de acção que, infelizmente, nunca foi levado totalmente à prática, pelo meu afastamento intempestivo da direcção em 1987.
As instalações do velho Hospital de Maria Pia estavam degradadas e insuficientes, tal como estão hoje passados 20 anos, razão pela qual lutámos junto do Ministério de Maldonado Gonelha para alteração de situação tão aviltante. Foi durante o seu mandato que se decidiu rever o projecto inicial da construção do novo hospital pediátrico do Porto, de 1975.
Durante dois anos tive a oportunidade de acompanhar e defender o novo programa dessa unidade, que estaria concluído, já em fase de estudo prévio, em Julho de 1986, em pleno consulado de Leonor Beleza.
Acontece que o então director-geral dos Hospitais, dr. Jacinto Magalhães, médico oriundo do quadro do Hospital de Maria Pia e também director do Instituto de Genética, pretendia ter um hospital pediátrico integrado e dependente do seu instituto.
Foi efectivamente a pressão deste dirigente que condicionou o abandono daquele programa e a definição de uma nova orientação -- devendo a construção do novo hospital ser efectuada na cerca do velho hospital -- um pequeno quintal, mesmo ao lado do Instituto de Genética.
O então primeiro-ministro, Cavaco Silva, chegou mesmo a visitar o Hospital de Maria Pia, já na Primavera de 1987, anunciando a dotação de 1 milhão de contos para o início dessas obras, as quais, apesar de múltiplos estudos, nunca tiveram início, por razões que desconheço. E deste modo a cidade do Porto perdeu aquele que seria o seu futuro hospital pediátrico.
A partir daqui muitas soluções foram aventadas até surgir a peregrina ideia do Centro Materno-Infantil do Porto, que após uma gestação turbulenta teve o destino que V. Exa. ditou.
Entretanto, o Hospital de Maria Pia, dirigido por individualidades de «visão curta», entrou em verdadeira autofagia, desviando-se dos grandes objectivos traçados em 1984, pelo que foi perdendo o seu lugar na assistência pediátrica do Norte e hoje em dia resta uma participação vestigial.
Abandonei o hospital em 1989, por discordar da orientação dos seus gestores e por ver coarctada a minha actuação, como ortopedista infantil profundamente empenhado no ensino, na divulgação e investigação da disciplina -- legando, apesar de toda a controvérsia, a experiência adquirida a dezenas de colaboradores, que foram realizando estágios no Maria Pia, e a todos aqueles que foram assistindo às múltiplas acções de formação realizadas nos anos subsequentes.
Foi uma decisão difícil, que alterou e cortou abruptamente planos que tinha traçado anos antes.
Seguiu-se a travessia do deserto, em que tive o ensejo de continuar a ensinar e a divulgar a Ortopedia infantil, através de seminários, cursos e congressos, quer a nível nacional quer no estrangeiro, no âmbito do exercício da clínica privada.

Ortopedia no Pedro Hispano

Aquando da abertura do Hospital de Pedro Hispano, em Matosinhos, no ano de 1997, fui convidado a liderar e fundar a sua Unidade de Ortopedia Infantil, o que me conduziu à integração no serviço que mais tarde haveria de dirigir.
O Hospital de Pedro Hispano, ao fim de 10 anos de existência, dispõe hoje de um Serviço de Ortopedia altamente qualificado, integrado por ortopedistas jovens e profundamente empenhados, com uma elevada diferenciação técnico-científica, pelo que está perfeitamente apto a responder às solicitações duma sociedade cada vez mais exigente, constituindo para mim uma grande honra e orgulho ter sido seu director e aí ter terminado a minha carreira em 19 de Novembro de 2006.
Ao longo de tantos anos de exercício, em tantos hospitais e nas mais diversas condições, era inevitável a minha participação na vida associativa da classe.
Por isso desempenhei funções na Ordem dos Médicos, sindicatos e associações médicas, e integrei múltiplos grupos de trabalho nas comissões inter-hospitalares e de nível ministerial.
Tal desempenho coincidiu com um período de grande agitação social e de profundas mudanças na sociedade portuguesa, pelo que foi com grande empenhamento que me dediquei à discussão e à organização do sector da Saúde em Portugal.
Daí o meu envolvimento na discussão e estabelecimento das carreiras médicas, nos anos 60, na organização dos hospitais após a nacionalização das Misericórdias, na estruturação dos internatos médicos e da formação médica continuada com a definição dos curricula, na organização dos concursos para assistentes hospitalares e chefes de serviço a nível nacional, na sua distribuição pelos hospitais e em tantas outras actividades, que era impossível relatar num documento desta natureza.
Foram mesmo 45 anos dedicados à defesa da classe, e indissociavelmente ligados à luta pela melhoria da prestação de cuidados ao doente.
Mas quando julgava encerrada a minha carreira hospitalar e quase tinha ultrapassado o período de nojo, que estas situações originam, fui um dia surpreendido por um telefonema do sr. director da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE/Hospital de Pedro Hispano, que me convidava para a cerimónia de abertura das comemorações do 10.º aniversário da instituição, o que não me surpreendeu, por ter sido, durante anos, o médico mais velho e mais antigo da casa.
Surpreendeu-me, sim, o facto de me ter sido anunciado que havia sido agraciado com a Medalha de Serviços Distintos do Ministério da Saúde e que esse galardão me seria entregue pelo sr. secretário de Estado, dr. Francisco Ramos, em representação do sr. ministro da Saúde, na referida sessão de abertura.
Se a atribuição de louvor público me tocou profundamente, a maneira como o texto de louvor está redigido sensibilizou-me ainda mais, porque nele são tratados, de maneira superior, os aspectos mais relevantes da minha actividade profissional.
Na sessão solene do Hospital de Pedro Hispano, em 19 de Março de 2007, aquando da entrega da medalha tive a oportunidade de agradecer a atribuição de tal benesse e anunciei que ela seria partilhada por todos aqueles que comigo trabalharam e permitiram o desempenho ao longo de 45 anos. Disse também que a oferecia a todos os doentes que beneficiaram da minha experiência e de igual modo a oferecia a todos os que careciam de cuidados, mas que ainda estavam nas listas de espera. Doentes a quem dava a minha solidariedade e a minha luta, já do outro lado da barreira, para poder levar a todos a ambicionada saúde.
Considerei encerrada, com esta sessão tão solene, a minha vivência como funcionário público.

Notícias incomodativas

Mas notícias, as mais diversas relacionadas com a saúde dos portugueses, que entretanto começaram a surgir nos jornais, na televisão e na rádio, vieram incomodar o cidadão, que sempre viveu dedicado a este sector.
Nos primeiros tempos foram as alterações relacionadas com a organização dos hospitais, a reestruturação dos serviços de Urgência, o encerramento das maternidades, as fusões hospitalares e toda uma série de determinações que atingiram negativamente o pessoal da Saúde.
Porque ao longo da minha vida perfilhei muitas ideias, que visavam a racionalização da distribuição de meios nos serviços, nos hospitais, com o objectivo de criar unidades tecnicamente válidas, aptas a um melhor desempenho, tendo em conta a redução dos custos, foi com estranheza que assisti à apresentação destes problemas, dando a imagem de uma marcada inabilidade na condução destas transformações, em que foi patente a falta de capacidade de comunicar e informar correctamente, o que levou inevitavelmente a avanços e recuos, a justificações inconsistentes, a cedência a pressões de toda a ordem e ao resvalar para um autoritarismo inaceitável no século XXI.
No fundo, um somatório de procedimentos pouco transparentes, em que sobressaía uma insuficiente e pouco esclarecida informação, o que irritou fortemente a generalidade da população, sobretudo aquela que se viu privada dos parcos meios assistenciais de que dispunha e ainda porque as escassas justificações apresentadas estavam eivadas de razões economicistas, que de uma maneira geral não respeitavam a «paridade da prestação de serviços», que devia abranger por igual todos os contribuintes portugueses, qualquer que fosse o seu local de residência.
Apesar de tantas reclamações dos mais diversos sectores da População, o sr. ministro da Saúde conseguiu (e vai conseguindo) impor as suas medidas com um determinismo e autoritarismo implacáveis.
O descontentamento do País é grande, sendo a desmotivação dos trabalhadores da saúde ainda maior, e o que sentirá o «velho lutador de 45 anos», que discutiu e contribuiu para a melhoria do sector da Saúde, como V. Exa. afirmou no seu louvor -- mais desiludido ficou, sobretudo quando viu parte do seu trabalho remetido para os «arquivos da História».
Terá havido efectivamente melhoria das condições de prestação de cuidados? Questiono-me se tal aconteceu, ao ler, ainda que transversalmente, os jornais e as notícias dos últimos meses. Continuam a surgir as antigas insuficiências e outras que o novo sistema criou!!!
Mas, sr. ministro, se a grande maioria das medidas e o modo como foram implementadas me desgostou profundamente, teve V. Exa., o condão de, no passado mês de Setembro, me chocar e desiludir ainda mais:
-- Ao anunciar o encerramento nocturno do Serviço de Urgência do Hospital de D. Luís I do Peso da Régua (minha terra natal) -- hospital onde trabalhei 12 anos como director do Serviço de Ortopedia -- 1972 a 1984;
-- Ao anunciar também o encerramento do Serviço de Ortopedia do Hospital de Lamego, por mim criado em 1968;
-- Ao assinar o documento que estabelece o Centro Hospitalar do Porto, extinguindo o Hospital de Maria Pia como entidade autónoma. Foi a este hospital que dediquei 30 anos da minha actividade, como ortopedista infantil.
Como pode calcular, foi com profunda mágoa e desgosto que vi surgir tais medidas, que põem termo, volvidos tantos anos, a unidades em que estive profundamente empenhado.
Foi por esse empenhamento que V. Exa. entendeu, bem recentemente, louvar-me.

Sentimento de agressão

Por mais razões que V. Exa. possa apresentar para justificar estas decisões, e nisso é V. Exa. perito, jamais conseguirá atenuar o meu sentimento de agressão e de delapidação do meu acervo histórico, que ficou assim privado dos seus pilares mais emblemáticos e ferido na sua integridade.
Mas o que mais lamento não é tanto a agressão à minha integridade histórica, mas sim a agressão a todos aqueles que vão ficar privados dos serviços, agora extintos ou a extinguir, sobretudo porque neste momento já não disponho de meios para, a partir do estádio zero, reconstruir, como antigamente e com outros dirigentes, as obras agora banidas. Mas porque estou do outro lado da barreira, como afirmei em Março de 2007, continuarei a defender os doentes carenciados de assistência.
Esta a verdadeira razão da mensagem e creia, sr. ministro, que apesar de me sentir profundamente magoado, manterei a minha disponibilidade para contribuir activamente para a discussão e organização do sector, em que o primado da justiça, da paridade e da proximidade presidam às medidas que venham a assegurar o bem-estar das populações, através de cuidados de saúde de elevado nível técnico e científico, apanágio do século XXI.

*Médico ortopedista

Subtítulos da responsabilidade da Redacção

Texto publicado, em exclusivo, em TM ONLINE de 2008.01.24
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sábado, 5 de janeiro de 2008

Campanha faz-se por cartas - TM

Troca de acusações entre candidatos e apoiantes na segunda volta
Campanha faz-se por cartas

A 10 dias da segunda volta das eleições para a presidência da Ordem dos Médicos, os ânimos estão ao rubro. Na recta final, a campanha parece fazer-se sobretudo através de cartas enviadas para casa dos médicos. E nestas as críticas, acusações e denúncias, de ambos os lados, subiram de tom.
O candidato Pedro Nunes escreveu uma carta aos médicos. Mas, como explica logo no início, esta dirige-se aos que na primeira volta se abstiveram, votaram em Carlos Silva Santos e, sobretudo, aos que pensam votar no seu adversário. «Se votou ou pensa votar Miguel Leão é para si esta carta. Tem o direito e o dever de saber quem escolheu e, devidamente informado, decidir alterar ou manter o seu sentido de voto», lê-se na carta a que o «TM» teve acesso.
Diz Pedro Nunes que perante a «mistificação e a mentira que não conheceram limites» viu-se obrigado a defender a sua honra. E são muitas e fortes as acusações que lança a Miguel Leão. «Durante três anos desestabilizou e fracturou artificialmente a Ordem e preparou ilicitamente à custa desta a sua campanha eleitoral. Apesar da disponibilidade do dr. Jorge Sampaio, impediu a aprovação da lei do acto médico com o irresponsável e demagógico referendo no Norte de um texto já vetado e materialmente inaprovável», acrescenta a missiva. Pedro Nunes diz ainda que «Miguel Leão é a escolha de Correia de Campos» e deixa no ar uma possível explicação: «Será porque durante três anos se ausentou sistematicamente do seu serviço hospitalar para preparar a campanha eleitoral, com conhecimento e bênção do ministro da Saúde?...».

Carta do Norte provoca reacção do CNE

O Conselho Regional do Norte (CRN) da Ordem dos Médicos, liderado por Moreira da Silva, apoiante de Miguel Leão, enviou igualmente uma carta a todos os médicos. Embora datada de 12 de Novembro, a missiva que tem como assunto, expresso logo no envelope, «O dr. Pedro Nunes contribuiu para a destruição das carreiras médicas e aumento de poderes da Entidade Reguladora da Saúde», chegou a casa dos médicos apenas na semana passada. E o seu conteúdo é composto por vários documentos que, segundo os autores, comprovam a falta de «competência, capacidade, legitimidade ou força» de Pedro Nunes. A lei do acto médico e o diploma dos hospitais EPE são alguns dos assuntos trazidos à colação.
E terá sido o teor desta carta que levou o bastonário em exercício, José Manuel Silva, a agir. Segundo explicou ao «TM» o também presidente do Conselho Regional do Centro e apoiante de Pedro Nunes, o Conselho Nacional Executivo (CNE) decidiu, depois de auscultados por telefone os elementos do Sul e do Centro deste órgão, «repor a verdade». «Com muita pena nossa fomos obrigados a gastar os recursos da Ordem num mailing que seria desnecessário se não fossem ultrapassados todos os limites por parte do CRN», afirmou o bastonário em exercício. A carta, que deverá estar a chegar a casa dos clínicos de todo o País, «desmonta todas as acusações falsas que são feitas ao dr. Pedro Nunes», alegou José Manuel Silva, apelidando de «chocante» o conteúdo da missiva do CRN. Na sua opinião, este órgão «conseguiu atingir os mínimos, em termos do que é a dignidade de ser médico e o respeito que deve haver entre colegas».
Por seu turno, José Pedro Moreira da Silva alega que a carta apenas pretende demonstrar que as acusações que Pedro Nunes tem feito à Secção Regional do Norte são falsas. «Durante todo o mandato o dr. Pedro Nunes escreveu na Revista da Ordem que as coisas que o CRN dizia eram mentira; como não temos direito de resposta na Revista, agora que estamos eleitos decidimos juntar os documentos e escrever esta carta aos médicos para provar que o dr. Pedro Nunes é um aldrabão», disse em declarações ao «TM». Aliás, o presidente do CRN não poupou nas palavras: «O dr. Pedro Nunes farta-se de dizer que o CRN pagou gastos do dr. Miguel Leão, mas nunca apresentou documentos que o comprovassem; ao contrário, nós mostramos os documentos que sustentam as nossas afirmações.» Quanto à altura em que a carta é enviada, o dirigente nortenho e apoiante de Miguel Leão não esconde: «Talvez seja uma boa achega para escolher um bom bastonário.»
Além disso, no passado dia 4 o CRN fez publicar no Público um «Esclarecimento aos médicos portugueses», onde questiona a legitimidade de Pedro Nunes para «alterar as regras eleitorais a meio do jogo».

João Semedo indignado com carta do Norte

O médico e deputado do Bloco de Esquerda, João Semedo, não tomou parte activa nem votou na primeira volta das eleições da OM. Mas depois de ter recebido em casa a carta do CRN resolveu mudar de ideias. E começou por escrever uma carta a Miguel Leão, explicando porque, agora, apoia Pedro Nunes.
Ao nosso Jornal, o médico disse ter ficado chocado com a missiva do Norte. «Está ao nível de uma disputa eleitoral num clube de futebol, faz lembrar os autos-de-fé da Inquisição, é mistificador, redutor e maniqueísta», classificou. O deputado questiona ainda a «legitimidade» do CRN para entrar directamente na disputa eleitoral. «Interrogo-me se antes de ser eleito já é assim, como será depois de eleito? Se tais práticas vão fazer escola na Ordem dos Médicos são o suficiente para me empenhar na derrota de Miguel Leão», acrescentou.

Sul apela ao voto

Também o Conselho Regional do Sul enviou uma carta aos médicos da região lembrando que terá lugar uma segunda volta e que na primeira a participação dos médicos do Sul foi baixa. «A 1.ª volta mostrou participações muito diferenciadas nas diferentes regiões. A título de exemplo votaram 36% de médicos na Secção Regional do Norte e apenas 27,5% na Secção Regional do Sul», lê-se na referida missiva. E embora não faça apelo directo ao voto em nenhum dos candidatos, a carta do órgão liderado por Isabel Caixeiro, apoiante de Pedro Nunes, não deixa de dizer que pede a participação de todos para a eleição «não ficar enfeudada a uma votação de carácter essencialmente regionalista». E termina afirmando que «votar é dar força a uma Ordem independente», sendo esta última palavra uma das mais utilizadas por Pedro Nunes, que, aliás, tem como lema de campanha «consolidar a independência, defender os médicos».

Maria F. Teixeira

TM 1.º CADERNO de 2008.01.07
0812731C10107MF01D