sexta-feira, 1 de junho de 2007

Listas de espera para cirurgia - um mal ou um bem?

Um mal ou um bem?
Listas de espera para cirurgia
Artigo do Dr. Coriolano Magalhães*

Colocar a questão se as listas de espera para cirurgia são um mal ou um bem parece quase um anacronismo. Se os doentes estão em lista de espera é porque devem padecer de doenças cuja tratamento implica uma cirurgia para aliviar o seu sofrimento, e portanto esperar pela operação só contribuirá para prolongar esse sofrimento.
Mas será que esta premissa é assim tão linear e que todos os doentes que os médicos colocam em lista de espera para cirurgia têm doenças que a cirurgia ajude a tratar? Ou que seja esta a melhor opção terapêutica?
Será que todos os doentes que são operados melhoram, ou será que são colocadas indicações cirúrgicas excessivas e as cirurgias, por vezes, não contribuem para melhorar os doentes e podem mesmo provocar o agravamento das suas queixas?

Quem está nas listas

Os doentes com patologias que possam colocar em risco a vida e com indicação para tratamento cirúrgico, como tumores malignos ou os tumores benignos de localização em que o crescimento possa ser gravemente lesivo ou mesmo letal, são na sua grande maioria operados em tempo útil, isto é, a tempo de evitar que a evolução natural da doença coloque em risco a qualidade de vida ou provoque a morte, e embora pontualmente possa ocorrer violação desta regra é excepcional que doentes com doenças graves estejam incluídos nas listas de espera.
A grande maioria dos doentes das listas têm doenças que, embora provoquem sofrimento e afectem a qualidade de vida, raramente colocam o risco de falecimento por causa dessa doença. Cito alguns exemplos destas doenças: cataratas, escoliose, pequenas hérnias da parede abdominal, varizes dos membros inferiores, hérnia discal, artrose da anca, síndroma do túnel cárpico.

Critério para operar

Estes tipos de doenças têm vários graus de gravidade e nem sempre colocam indicação cirúrgica; existem critérios para tratamento operatório ou tratamento conservador.
Só que esses critérios são aplicados com grande variabilidade de cirurgião para cirurgião. Essa variabilidade nem sempre obedece a critérios estritamente médicos. Enuncio algumas dessas variáveis que podem condicionar a decisão: a experiência do cirurgião e sua equipa; a qualidade e a tecnologia do estabelecimento hospitalar; os interesses económicos do cirurgião — cirurgia paga (vulgarmente em hospital privado) ou não paga (hospital público); a simulação e os interesses escondidos do doente — manter-se de baixa, indemnização a ser paga por uma companhia de seguros; o carácter mais ou menos intervencionista do cirurgião.

Critérios excessivos

Há cerca de 30 anos um cirurgião pediatra americano que constatara que os cálculos biliares continham partículas radioactivas advogou que todos as crianças fossem operadas nos primeiros tempos de vida para excisão da vesícula biliar, local onde mais frequentemente se formam os cálculos biliares, para evitar que a radioactividade dessas partículas, actuando ao longo dos anos, viesse a provocar tumores malignos na vesícula na idade adulta.
É claro que houve bom senso para que esta medida exagerada não fosse adoptada, dado não haver uma incidência de tumores da vesícula que justifique efectuar milhões de cirurgias em todo o mundo para, eventualmente e não de certeza, prevenir um reduzido número de tumores.
Mas o mesmo bom senso não funcionou entre a classe médica durante décadas no que se refere aos milhões de mutilações efectuadas para extirpar as amígdalas, até que se demonstrou que a maioria dessas cirurgias eram perfeitamente inúteis e que provocavam mais inconvenientes que benefícios.

Operar ou não operar

Sabemos que há um número significativo de cirurgias que não contribuem para a melhoria das doenças, e também sabemos que um número significativo de doentes piora por terem sido operados, independentemente da boa técnica cirúrgica.
É utópico pensar que todos os actos cirúrgicos serão sempre bem sucedidos, mesmo que tecnicamente bem executados, porque há variantes que determinam o resultado final.
Mas esta premissa não pode servir para alimentar a aceitação de um número de insucessos cirúrgicos exagerado em relação à média esperada para um determinado tipo de cirurgia.
A correcta indicação cirúrgica é o primeiro passo para o sucesso ou insucesso da cirurgia.
Os insucessos cirúrgicos ficam economicamente caros, não só pelos custos dos actos cirúrgicos inúteis e falhados, mas também pelo acréscimo de despesa que acarretam para tratar os males que provocam.
Os números dos insucessos cirúrgicos podem ser tolerados se estiverem dentro dos valores estatisticamente aceitáveis, mas, se esses valores são exagerados, os cirurgiões e os serviços de Cirurgia onde o facto ocorre devem ser alertados para corrigirem os seus critérios cirúrgicos.

Como se faz a lista

Analisemos o processo desde a inscrição na lista até ao acto cirúrgico.
As listas formam-se nos hospitais públicos que recebem pedidos de consultas de Cirurgia, mais frequentemente por iniciativa dos centros de saúde onde os doentes estão inscritos por iniciativa própria. É assim o sistema em vigor. Naturalmente que também há doentes que marcam a consulta para um determinado médico por sua livre vontade, mas é uma percentagem menor.
Quando o cirurgião lhe atribui indicação cirúrgica, o doente dá o consentimento para ser operado, assinando uma declaração em que consta que foi devidamente informado pelo cirurgião sobre a sua doença e dos actos cirúrgicos a que irá ser submetido.
Pelo depoimento de alguns doentes fica a dúvida se neste primeiro passo ficam devidamente informados das alternativas de tratamento, das vantagens, desvantagens e das consequências do acto cirúrgico a que vão ser submetidos.
Do que não há dúvida é que, esclarecidos ou não, decididos ou vacilantes, assinam e só assim podem ser inscritos na lista.
Por vezes, os doentes referem que, aquando da decisão de os inscrever, o cirurgião tem o cuidado de informar que os inscritos na lista de espera poderão ter que aguardar cerca de um ano ou mais, e que poderá não ser ele próprio mas sim um outro o cirurgião a efectuar a cirurgia. Também por vezes informam que não terão que aguardar tanto tempo pela cirurgia se tiverem um sistema de saúde ou possibilidade económica que permita serem operados em hospital ou clínica privada, podendo ser ele o cirurgião a efectuar a operação.
Esta última informação é geralmente inútil porque a grande maioria dos doentes aguarda e só muito excepcionalmente os cirurgiões encontram nas consultas hospitalares um doente que decida alargar os cordões à bolsa, porque, na realidade, a maioria não tem bolsa a que possa alargar os cordões.

A chamada

Se o doente não for chamado dentro de seis meses para ser operado no hospital onde ficou inscrito poderá então ser chamado, ao abrigo do programa SIGIC, para ser operado em sistema convencionado, no mesmo hospital onde foi feita a sua inscrição ou noutro hospital público ou privado, sendo o acto cirúrgico pago pelo programa, à peça, mas por valores que são bastante inferiores ao da maioria das convenções ou seguros de doença.
Quando chamado, será ou não reavaliado pelo cirurgião que o vai operar. Se for reavaliado, este poderá achar que não coloca indicação cirúrgica e recusar o doente para cirurgia. Se o doente for chamado para um desses sítios em que não é feita reavaliação da situação clínica após os vários meses de espera, será operado com base no critério puro e simples de que se está na lista de espera e respondeu à chamada é para ser operado.

Quem responde à chamada

Quando as funcionárias administrativas do serviço hospitalar onde trabalho têm que chamar doentes inscritos nas listas de espera, pelos vários médicos, frequentemente os doentes recusam vir para serem operados. Tentei quantificar estas recusas e constatei que para obter a anuência de um doente tinham que, em média, ser contactados seis.
Portanto, e em média, por cada seis doentes da lista de espera de Neurocirurgia, cinco recusam a cirurgia.
Decidi tentar saber se era um problema só dos doentes de Neurocirurgia ou era uma «doença» que também atingia as outras especialidades cirúrgicas.
Percorri os diferentes serviços do hospital conversando com os funcionários administrativos que tinham a cargo a chamada dos doentes das várias especialidades cirúrgicas com listas de espera e fiquei a saber que a «doença» era geral.
O número de contactos que os funcionários tinham que fazer para conseguir um doente que concordasse em vir para ser operado variava em função da especialidade cirúrgica. Essa variação era em média de quatro a oito doentes contactados para conseguir um.
Eram múltiplas e variadas as justificações dos doentes para recusar a cirurgia.
Se tantos doentes recusam a cirurgia, de certeza que uma boa percentagem melhora espontaneamente. Pode-se concluir que são postas excessivas indicações operatórias e que o tempo se encarrega de melhorar o que o cirurgião pensava que só melhoraria com cirurgia.
Mas seriam só os médicos do meu hospital que estavam a colocar excessivas indicações cirúrgicas?
Averiguei junto de colegas de outros hospitais qual era a sensação que tinham em relação à anuência à cirurgia dos doentes da sua lista de espera e confirmaram análogo comportamento por parte dos doentes chamados para os seus hospitais.
O que concluir?
É claro que os doentes têm quase sempre uma boa dose de medo de serem operados, mas não se torna credível que o seu medo seja tão grande e frequente que justifique decidir carregar com a doença que o cirurgião determinou que deveria ser erradicada cirurgicamente. É mais credível que tenham melhorado sem cirurgia.

A cirurgia

Pelos preços pagos, as clínicas privadas põem em funcionamento esquemas para estes doentes que são proporcionais ao que recebem.
Não é raro que coloquem condições aos médicos para que sejam efectuadas as cirurgias num determinado tempo de modo a rentabilizar o bloco operatório para poderem efectuar um número de cirurgias que torne o acordo com o programa SIGIC rentável.
E também condicionam o internamento a um período curto de modo a que as camas de enfermaria possam ser devidamente rentabilizadas.
Os doentes que possam vir a precisar de cirurgias mais prolongadas ou internamentos mais longos são recusados para serem operados, com a mais variada fundamentação, pois não seriam rentáveis.
A maioria das cirurgias ou o pós-operatório decorrem sem complicações.
Não haver complicações não é o mesmo que conseguir curar os males do doente. Isso é outra coisa.
Mas quando ocorrem complicações não é raro que o cirurgião force a alta do doente de modo a funcionar dentro da margem de dias de internamento que permitem ter lucro e evite o internamento prolongado que dará prejuízo.
E se a complicação o justifica, não é raro que recorra ao hospital público onde também trabalha para resolver aí as complicações da cirurgia efectuada em clínica privada.

Quem avalia os resultados?

Em Portugal, quem alerta ou contesta quando os insucessos são excessivos? Quem recolhe dados referentes aos resultados cirúrgicos e á satisfação dos doentes operados?
Nos serviços hospitalares públicos, onde funcionam serviços com múltiplos médicos, ainda se vai fazendo sentir a crítica do grupo, mas frequentemente de forma diluída e não sistemática, e nem estatisticamente quantificada.
Nos hospitais privados é frequente que o sucesso ou insucesso cirúrgico se fique quase entre o médico e o doente e seus familiares; no interior da clínica é natural que transpire um pouco para o grupo de enfermeiros que assistem o doente no pós-operatório imediato; no exterior, transpira para os conhecidos do doente e seus familiares.
Numa grande urbe, em que por vezes o médico opera em mais do que um hospital privado, e onde acorrem doentes dispersos por várias localidades da periferia ou de localidades distantes e portanto se torna difícil que estes tenham opinião formada sobre as condições em que vão ser operados, este sistema crítico pode ser muito limitado.
Poucas unidades hospitalares do nosso país, públicas ou privadas, têm sistemas de análises credíveis sobre o grau de satisfação dos doentes operados que permitam tirar ilações cientificamente correctas.
A tal ponto é pouco credível a avaliação estatística neste campo, nos estabelecimentos hospitalares portugueses, que só excepcionalmente estes são aceites para participar em estudos multicêntricos internacionais.
Os bons resultados cirúrgicos que os cirurgiões apresentam em reuniões e congressos não é raro que descrevam mais aquilo que o cirurgião gostaria que acontecesse do que o que na realidade acontece.

Afinal...

Que as listas de espera são um mal, ninguém duvida.
Mas, nas actuais condições de controlo dos actos cirúrgicos, o tempo de espera pela cirurgia leva a que muitas vezes o doente melhore de forma natural e evite uma acto cirúrgico, proposto por vezes em critérios que se vêm a revelar pouco consistentes.
Há necessidade de implementar inquéritos sobre o grau de satisfação por parte dos doentes em relação aos actos cirúrgicos a que são submetidos, efectuados por rotina em hospitais públicos e privados, a nível nacional e de forma credível, para que se diminua a probabilidade de serem efectuadas cirurgias desnecessárias, tais como as que durante décadas, inutilmente e com inconvenientes, se efectuaram às amígdalas.
Já agora, que a Ordem dos Médicos faça um esforço para ordenar alguma coisa nesta matéria.

* Neurocirurgião do Hospital de S. José

in Tempo de Medicina 1.º CADERNO de 2006.07.17