quinta-feira, 7 de junho de 2007

Os números estão com gripe?

Artigo do Prof. José Manuel Silva*

O Ministério da Saúde afirma que o encerramento dos SAP não teve um «impacte significativo» nas Urgências. Parece que voltámos ao tempo de Luís Filipe Pereira. Um ministro autista, sempre pronto a manipular números, a mesma política anti-social e antimédica, e o primado da contabilidade duvidosa!
Esclareça-se que a Ordem dos Médicos nunca esteve contra o encerramento de alguns SAP, desde que aos cidadãos fosse disponibilizada um verdadeira alternativa e desde que fosse avaliada, e quando necessário reforçada, a capacidade de resposta das Urgências hospitalares. Por exemplo, nunca discutimos o encerramento do SAP de Coimbra, uma cidade com três Urgências abertas 24 horas por dia.
Também não contestámos o encerramento nocturno dos SAP nem nos opusemos a que os SAP diurnos fossem transformados em consultas abertas, desde que a cobertura das respectivas populações em situações de urgência/emergência estivesse devidamente assegurada pela proximidade a serviços de Urgência e/ou por verdadeiras viaturas de emergência médica.
Não podemos esquecer, todavia, que, mesmo tendo o ministro da Saúde desvalorizado insultuosamente a qualidade do trabalho realizado nos SAP, a verdade é que o INEM os considerava e considera verdadeiros serviços de Urgência, para eles transportando todo o tipo de doentes, mesmo os mais graves.
Lamentável é que o Ministério da Saúde e os seus amigos tenham repetido à exaustão a demagogia de que o encerramento dos SAP iria libertar médicos para realizar milhões de consultas adicionais, quando a esmagadora maioria desses serviços era, e é, realizada em horas extraordinárias, pelo que não afecta o período normal de trabalho, e as consultas abertas continuam a exigir escalas de disponibilidade!

Consequências dos encerramentos

Porém, naturalmente que chamámos a atenção para as naturais consequências dos encerramentos. Fechar recursos obriga os doentes a recorrer a outros, que irão ser mais solicitados, e pode mesmo atrasar o atendimento em situações de desequilíbrio iminente, porque afasta os necessários recursos para mais longe. Para além de criticarmos violentamente e responsabilizarmos o ministro pelas consequências da substituição de médicos por enfermeiros, como aconteceu no já desfavorecido distrito de Bragança, que ficou ainda mais distante do Terreiro do Paço.
Para prevenir algumas das complexas confusões que têm surgido no terreno com a assistência a doentes, instámos o Ministério da Saúde a definir o que são consultas abertas, e o ministro a isso se comprometeu. Não inesperadamente, ainda não é conhecido nenhum regulamento das chamadas consultas abertas, revelando a confrangedora falta de interesse e competência do Ministério da Saúde e das suas comissões em definir regras claras e transparentes para o funcionamento dos centros de saúde. Nem sequer existe capacidade para colocar um ponto final na bagunçada de nomes que por esse país fora são atribuídos às «consultas abertas»!
É evidente -- de estranhar seria o contrário -- que todas estas indefinições e encerramentos têm consequências, porque os doentes precisam de uma resposta clínica atempada. Não vamos, neste texto, repisar a questão da potencial deterioração de situações clínicas mais graves pelo dilatar do atendimento e as implicações na procura devidas ao afastamento dos recursos, vamos apenas dissecar a política dos números.
Para grande satisfação dos seus responsáveis, um estudo do MS concluiu que encerrar SAP não teve reflexos lineares nas Urgências hospitalares. É interessante o adjectivo «lineares», o que significa que o MS reconhece que houve reflexos, só que não foram «lineares»…

Considerações sobre o relatório

Algumas considerações sobre o relatório disponível no Portal da Saúde:
-- Pasme-se, as conclusões do referido relatório baseiam-se em dados que não são disponibilizados online e não é possível perceber se a análise da origem nocturna dos doentes que recorreram aos HUC e CHC foi feita por freguesia ou por concelho, o que faz muita diferença! Por outro lado, em termos estatísticos, as médias mensais fornecem uma informação limitada!
-- Apesar de reconhecer que a procura aumentou generalizadamente no final de 2006 relativamente a 2005, a única preocupação do relatório foi afirmar que «a ideia, mais simplista e redutora, de que o encerramento de SAP no período nocturno causa forte impacte, mensurável, na procura de Urgências hospitalares, não foi validada pelos dados apresentados». Todos os outros pontos que necessitavam de avaliação e diagnóstico, como o inusitado aumento da procura das Urgências, esta sim, uma questão ponderosa, foram completamente ignorados! Nem uma palavra! Para não ser demasiado antipático, digamos apenas que foi uma conclusão «simplista e redutora»…
-- Que enorme confusão grassa no MS com as infecções virais do tracto respiratório! Depois de o MS ter passado o Inverno a afirmar que não havia epidemia de gripe, agora o relatório vem justificar o enorme afluxo às Urgências hospitalares com a epidemia de gripe do fim de 2006, princípio de 2007! Curioso é que no Diário Digital de 8-2-07, o mesmo MS afirmou que «a actividade gripal em Portugal não está a ser mais intensa do que em anos anteriores»!
-- Particularmente interessante este parágrafo do Público, de 9-2-07: «Considerado preocupante é o facto de as consultas nos centros de saúde -- que deveriam ser a principal porta de entrada para o tratamento de “gripes triviais” -- não ter registado uma subida tão grande como nos hospitais. Houve 17 mil idas aos centros de saúde a 5 de Fevereiro, quando nos dias de maior procura, em epidemia de gripe, costuma chegar-se aos 26 mil episódios. “A procura nos centros de saúde este ano é a mais baixa de sempre”, lê-se no comunicado do MS.» Sim, é o mesmo MS!...
-- Afinal, meus senhores do MS, os «surtos» de gripe flutuam conforme as conveniências, ora existem, ora não existem?!
-- Afinal, meus senhores do MS, o que se passa em Portugal? Onde está a reforma dos CSP e para quando os seus urgentíssimos efeitos? Porque é que os doentes recorrem cada vez mais às Urgências hospitalares e não aos centros de saúde? O gabinete do distinto MS não é capaz de produzir nenhuma explicação, nem uma?
-- Para fugir à questão das gripes e vírus quejandos, analisemos os dados referentes aos meses de Novembro, antes dos «surtos» de gripe, comparando 2006 com 2005, ou seja, depois e antes dos encerramentos: os aumentos foram de 8,3% nos HUC, 15,5% no CHC, 1,5% na Figueira da Foz, 12,6% em Beja, 16,7% no Barlavento Algarvio, 6,4% em Vila Franca de Xira, 10,7% em Aveiro, 9,8% em Viseu, 14,7% na Guarda, 2% na Feira, 7,6% em Évora, 13% em Leiria. Vistos assim, os números são impressionantes, não são? E para isto, o gabinete do MS nem sequer tem tentativas de interpretação?

Perceber porque aumenta a procura

Não tenho quaisquer dúvidas de que o encerramento de recursos nos centros de saúde, os sucessivos ataques aos médicos, que têm levado muitos a reformar-se precocemente, e as tristes e absurdas afirmações do senhor ministro a incentivar o recurso às Urgências hospitalares (recordam-se de quando e porque foram proferidas?...) contribuíram para aumentar o afluxo de doentes aos hospitais em detrimento dos centros de saúde. Só anjinhos papudos poderiam pensar que todas as medidas e afirmações que têm vindo a ser tomadas e proferidas seriam inocentes. Uma questão que deveria ter suscitado algum esforço neuronal do gabinete do distinto MS era precisamente a de perceber porque aumenta generalizada e progressivamente a procura das Urgências hospitalares.
As razões mais íntimas e correctas dos números só poderão ser encontradas com verdadeiras auditorias, objectivas, exaustivas, inteligentes e independentes. Daquelas de que muitos não gostam, porque não dá para controlar as conclusões… Por exemplo, quem ia de noite aos SAP passou a esperar mais pela manhã para ir às Urgências hospitalares, porque estas ficaram mais longe? Até que ponto os tempos de espera nas Urgências, que se agravaram, desincentivam os doentes de a elas recorrer -- será esse o objectivo?... E com que consequências? Etc., etc.
Convém ter presente que a falta dos SAP nocturnos se faz sentir essencialmente nos períodos de maior necessidade, pois funcionavam como uma almofada que agora se perdeu.
Por tudo isto, na região que tão bem conhecemos, vemos com imensa preocupação o anunciado encerramento das Urgências de Cantanhede e Anadia; esperemos que prevaleça o bom senso e não o frio economicismo. Para que ninguém diga que não sabia e para responsabilizar quem de direito, volto a repetir que, em períodos de maior afluxo, a capacidade de resposta física e humana da generalidade das Urgências hospitalares é completamente ultrapassada, colocando em causa a qualidade do serviço aí prestado!
Mas, independentemente de todas estas questões e da atabalhoada e simplista tentativa de branqueamento da realidade, o mais importante era que se fizesse uma análise rigorosa das razões que levam ao entupimento das Urgências hospitalares nos períodos de maior procura, uma factualidade indesmentível, a fim de procurar as soluções mais adequadas para este grave problema, impossível de resolver sem a bendita reforma dos CSP. Fica o desafio para o gabinete do MS.

*Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos

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TM ONLINE de 2007.06.06
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