terça-feira, 9 de outubro de 2007

Os pobres que paguem a crise!

Os pobres que paguem a crise!*
Artigo do Prof. José Manuel Silva**

«Escrevo porque o erro, a degradação e a injustiça não devem ter razão»
Vergílio Ferreira

Encontrei esta citação num livro de Joaquim Sarmento, Fragmentos e Paixões, em cujo prefácio Manuel Alegre escreveu: «Há um homem (…) que gosta das suas raízes genuínas, mas é um cidadão do mundo (…) preocupa-se, interroga-se, um homem que, imagine-se, é socialista por convicção, o que é altamente inconveniente neste tempo de capitalismo global e selvagem.»
Revejo-me em Vergílio Ferreira, em Joaquim Sarmento, em Manuel Alegre e tantos outros que escrevem contra a injustiça, contra a degradação, contra o situacionismo, conta o capitalismo selvagem, contra o erro. Revejo-me em todos aqueles que têm a coragem de assumir posições contrárias ao politicamente correcto, de afrontar publicamente os poderes instituídos, de dizer não aos compromissos e aos ensurdecedores silêncios dos que comem as migalhas do poder.
Revejo-me em Alfredo Barroso, que na sua crónica do «Sol» (1-9-07), com o mesmo título deste editorial, não teve receio das frases fortes e, com todo o seu peso institucional, escreveu: «As grandes fortunas prosperam, tendo crescido 35,8% em relação a 2006»; «As diferenças de rendimentos entre ricos e pobres, em Portugal, atingiram uma dimensão inédita»; «Portugal é o país europeu que menos investe em Segurança Social»; «A perda de quaisquer estímulos ideológicos na luta política gerou um vazio ao nível das ideias, das convicções e dos princípios»; «Dizem as boas línguas que o Governo do engenheiro Sócrates tem feito “reformas muito corajosas”. Eu, que sempre fui má-língua, limito-me a perguntar: é preciso coragem para exigir aos pobres que paguem a crise?!».
Revejo-me em Diniz de Freitas («Diário de Coimbra», 10-7-07): «Ao contrário do que os actuais responsáveis da saúde proclamam, o custo e a qualidade podem melhorar em simultâneo»; «a tutela não só tem ignorado este princípio, mas agravou irresponsavelmente a situação ao destruir as carreiras médicas, um notável instrumento de ensino e formação, mas também de motivação e responsabilização»; de facto, assiste-se ao desmantelamento do Serviço Nacional de Saúde, que, apesar das suas imperfeições, atingiu uma honrosa 12.ª posição no concerto mundial, e testemunha-se a tessitura de um modelo de saúde virtual porque indefinível, abstruso porque ambíguo, incongruente porque desgarrado, casuístico e reactivo, e onde floresce, certamente por tudo isto, a pesporrência, a intimidação, a desorientação, a bajulação e a delação.
Revejo-me em António Arnaut («JN», 30-6-07): «Mas esquece os casos em que a existência de um médico num lugar isolado dá uma garantia psicológica às populações. E isso tem de se pagar, porque é também uma questão de coesão social. O Estado tem de suportar os custos da interioridade, como suporta os da insularidade.»
Revejo-me na seta para baixo do «Público», de 15-3-07: «Se fossem as populações, era de se lhes dar um desconto. Mas são os peritos da Comissão que sugeriu o fecho de alguns blocos de partos a dizer que há recomendações que não estão a ser cumpridas. Faltam médicos e equipamentos em algumas unidades que absorveram os partos das que encerraram. Não basta fechar, é preciso avaliar, senhor ministro. São os peritos que dizem…»
Poderia continuar quase indefinidamente na citação de insuspeitas vozes críticas da actual política de saúde. O espaço não mo permite.
Por tudo isto, é de salientar a desfaçatez com que o ministro da Saúde afirmou numa conferência organizada pela FLAD: «Não fazer nada seria a forma mais rápida de destruir o SNS» («Médico de Família», Junho 2007), quando a realidade mostra que a maioria das medidas por ele tomadas estão a acelerar irremediavelmente o arrasamento do SNS com a única preocupação de cumprir cegamente o orçamento, concentrar recursos afastando-os das populações mais desfavorecidas, transferir custos para os doentes e facilitar a implantação dos grandes grupos económicos. A este propósito são elucidativas as afirmações de João Silva Lopes, presidente do Montepio: «Hospitais privados só serão viáveis à custa do Estado» («VE», 28-08-07).
Nessa mesma conferência, Correia de Campos enumerou as suas três grandes prioridades: a reforma dos CSP, a rede de cuidados continuados e a sustentabilidade do SNS.
Que apreciações sucintas merecem estas prioridades?
-- A reforma dos CSP, não obstante a pureza dos objectivos, que sempre defendemos, e ter conseguido alguns avanços, enferma de problemas metodológicos graves, há muito detectados, que a têm atrasado de forma insustentável, com custos para o País.
-- A rede de cuidados continuados, apesar de financiada pelo dinheiro do euromilhões, demora e está a ser implementada de forma ineficiente, com reflexos negativos para os doentes, para os hospitais e para as Urgências.
-- A sustentabilidade (?!) do SNS está objectivamente a ser «conseguida» à custa da qualidade e funcionamento dos serviços e asfixia financeira das instituições.
Que comentários podemos fazer quando, no relatório clínico do internamento de um doente numa instituição hospitalar, no ano de 2007, os médicos são obrigados a escrever que o doente será chamado posteriormente para efectuar um medulograma pois não há agulhas de medulograma no serviço de Hematologia desse hospital?
Que dizer quando o ministro da Saúde pressiona os hospitais não para melhorarem e investirem em qualidade, mas unicamente para reduzirem as despesas e colocá-los a dar «lucro»?!
Que dizer dos obstáculos colocados ao real aumento da produtividade hospitalar, pois mais produção é mais despesa?
Que dizer quando concursos para aquisição de equipamentos e consumíveis são deliberadamente atrasados (com consequências para os doentes!) apenas para cumprir o orçamento?
Que dizer de um ministro que usa o relatório da reforma das Urgências apenas para acelerar o encerramento de SAP e Urgências hospitalares e não para abrir um único dos locais que deve abrir e equipar convenientemente os que precisam de ser equipados?
Que dizer de um ministro que até a facturação do seu Ministério, do Estado (!), entrega a empresas privadas, socorrendo-se de duvidosas contas a comprovar o «lucro»?
Que dizer de um ministro que se congratula com uma redução de 9,5 milhões na despesa do Estado com medicamentos nos primeiros sete meses deste ano, sabendo que os utentes viram o gasto com medicamentos crescer 92 milhões de euros?! («JN», 27-08-07).
Que dizer de um ministro que transforma SAP em SEP (serviços de enfermagem permanente), que quer transformar VMER em VEER (viaturas de enfermagem de emergência e reanimação), que quer retirar os médicos das equipas dos helicópteros do INEM, e que agora cria e nomeia o Chief Nursing Officer, uma espécie de representante dos enfermeiros nomeado pelo Governo português com um pomposo nome em inglês?!
Que dizer quando a imposição absurda do PRACE à Saúde, com despedimentos em série (eufemisticamente chamados de não renovações?), vai criar inultrapassáveis dificuldades às instituições de saúde com o encerramento de muitos programas, nomeadamente a nível da prevenção? Quem vai sofrer as consequências?
Que dizer de um ministro que alguns insistem em qualificar como grande especialista em Saúde (!?), que é um verdadeiro perito em «gaffes», como a da Ortopedia a quente ou a de que os doentes há mais tempo em lista de espera cirúrgica talvez sejam inoperáveis?!
Que dizer de um ministro da Saúde que promove uma reforma dos CSP assente nos agrupamentos de CS enquanto implementa e promete novas unidades locais de saúde?
Que dizer de um ministro que, prenhe de avanços e recuos, cria e mata o Centro Hospitalar da Beira Interior, eternizando uma indefinição que está a prejudicar os três hospitais envolvidos? Será esse o objectivo?!...
Mais uma vez poderia continuar quase indefinidamente na chamada de atenção dos cidadãos para as consequências dos erros da actual política da Saúde. Infelizmente, o espaço não mo permite.
A verdade é que os profissionais da saúde sentem cada vez com mais acuidade os graves problemas que estão a afectar a qualidade e funcionalidade do SNS, com falta de recursos físicos, humanos e financeiros a muitos níveis. Os principais prejudicados serão os doentes, porque a filosofia do SNS está a ser destruída activamente.
Será vergonhoso e um profundo despudor se o ministro da Saúde voltar a afirmar a sua alegria pelo cumprimento do Orçamento, porque quem está bem informado sabe que isso está a ser conseguido essencialmente à custa de um emagrecimento artificial e comprometimento da qualidade do SNS.
A verdade é as «grandes reformas» da Saúde pouco mais têm feito do que exigir aos pobres que paguem a crise!
Muito provavelmente este ministro será remodelado lá para Janeiro de 2008. Não vai deixar saudades. Esperemos que, ao mudar o ministro, também mude a política de Saúde!

*Texto publicado como «Editorial» no Boletim Informativo da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos (série III, n.º 30)

** Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos

Texto publicado, em exclusivo, em TM ONLINE de 2007.10.08
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