Santana Maia fala sobre as actuais transformações no sector
«Não se pode deixar que a Saúde se transforme num negócio»
Para Santana Maia, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) «é um bem colectivo que importa manter», universal e tendencialmente gratuito. O antigo bastonário admite, contudo, que é necessária «alguma contenção», sem penalizar os doentes, e critica «a progressão exagerada de prestadores privados».
«Tempo Medicina» — Na sua opinião, quais são, ou serão, as consequências, para a profissão médica, de todas as transformações que têm ocorrido no sector da Saúde nos últimos tempos?
Santana Maia — Depende do que se considerem os últimos tempos, se os últimos 50 anos, se os últimos cinco anos. Nos últimos 50 anos há transformações brutais. Nos últimos cinco anos há menos transformações, mas também importantes. A Medicina faz-se cada vez mais em equipa e menos individualmente, a profissão médica é cada vez menos exercida pelo médico isolado, pelo antigo médico de consultório. Por outro lado, a Medicina está a transformar-se numa profissão de assalariados — sejam funcionários do Estado, de sociedades privadas ou de outros médicos — e menos de trabalhadores independentes. Há uma certa proletarização dos médicos, contra a qual me manifestei muitas vezes, enquanto presidente da Secção Regional do Centro e bastonário da Ordem dos Médicos. Aliás, enquanto bastonário, e mesmo antes, propus a criação de uma lei-quadro de convenções, porque entendo que a Medicina convencionada era interessante para os médicos e para a população. Mas até hoje ainda não se conseguiu criar essa lei.
«TM» — Pensa que essa lei-quadro traria benefícios?
SM — Sim. A Medicina convencionada já existe, mas de uma forma anárquica, desigual, e devia ser disciplinada e alargada, perfeitamente límpida, clara, transparente. Uma lei-quadro das convenções beneficiaria os médicos e a população, ao dar a possibilidade de o doente escolher o médico.
«TM» - A proletarização dos médicos está a acentuar-se?
SM — Tende a acentuar-se, porque os médicos, por si só, porque trabalham isoladamente, não conseguem fazer os investimentos que são precisos na área da Saúde e cada vez mais serão funcionários.
«TM» — Quando assistiu ao nascimento do SNS esperava que tivesse esta evolução?
SM — Assisti ao seu nascimento e saudei-o. E tenho saudado a sua longevidade e importância, tem sido fundamental. Os dados da Saúde em Portugal melhoraram espectacularmente através do SNS, que é um bem colectivo que importa manter, embora evoluindo. E é evidente que tem havido evoluções, algumas, a meu ver, demasiado grandes. Mas, dex qualquer forma, tem-se mantido.
«TM» — Não esperava que seguisse o actual caminho?
SM — Exactamente, tem havido privatizações a mais, tem havido um benefício do capital. A Saúde, a meu ver, é um bem, não é um negócio, e tem havido negócio a mais na Saúde. É evidente que é um negócio importante, que mexe com muito dinheiro, mas não pode deixar-se que se transforme num negócio e está a correr-se esse risco.
«Modelo EPE é preferível ao SA»
«TM» — A crescente transformação de hospitais públicos em EPE, as parcerias público-privadas (PPP), entre outras mudanças, podem vir a significar o fim do SNS? Como vê essa relação?
SM — Começou a falar-se nos hospitais EPE através de uma proposta de estatuto hospitalar, era ministra a dr.ª Maria de Belém e era bastonário o prof. Carlos Ribeiro. E falava-se na sua criação de uma forma generalizada, alargada a todo o País. Na altura opus-me a isso, e de facto não foi para a frente. Eu entendia que devia haver primeiro uma experiência num ou dois hospitais e foi o que se passou. O Hospital da Feira foi a primeira EPE, deu bons resultados e alargou-se a outros. O ministro Luís Filipe Pereira criou os SA, que são sociedades comerciais anónimas diferentes dos EPE, que são entidades públicas do tipo empresarial, mas são públicas. Apesar de tudo, julgo que o modelo EPE é preferível ao das SA. Com as SA corria-se o risco de privatização, porque, em caso de dívidas, sendo sociedades anónimas os credores podiam tomar conta delas. As EPE não correm esse risco. As PPP podem ser uma solução para a falta de dinheiro, para investimento, do Estado, são uma espécie de SCUT na Saúde. Depois há vários tipos de parcerias, só no investimento ou também na exploração.
«TM» — Como se posicionará o SNS perante os prestadores privados?
SM — O SNS mantém-se, pagando aos privados. Hoje cada vez mais há separação entre entidade pagadora e prestadora, mas penso que tem havido excessos ao querer passar os privados a prestadores e o Estado só a pagador. Esta progressão de prestadores privados é que é exagerada. Deve haver prestadores privados, mas na Saúde, como noutras áreas, o Estado deve continuar a ser o principal prestador, através de hospitais do sector público administrativo e EPE.
«TM» — Tem sido surpreendido com algumas das soluções adoptadas no SNS? Por exemplo, com o aumento das taxas moderadoras?
SM — Acho mal que as taxas moderadoras tenham sido aplicadas ao internamento e às cirurgias, porque ninguém é internado e operado por gosto. As taxas moderadoras são constitucionais se forem moderadoras e não se forem para fazer dinheiro ou funcionar como co-pagamento. O espírito do SNS é ser um serviço público, universal e tendencialmente gratuito. E deve manter-se como está previsto na Constituição. Porque se o SNS passar para os privados, passa a haver uma Medicina dos ricos e uma Medicina dos pobres.
«Deve haver uma certa contenção»
«TM» — O SNS continuará a ser de acesso universal, geral e tendencialmente gratuito?
SM — Sim, dentro de determinados limites. Hoje assistimos ao envelhecimento da população, que vive mais e depende cada vez mais da Saúde e dos médicos, de medicamentos e exames muito caros, porque a Medicina tecnologicamente evoluiu muito, os gastos da Saúde têm aumentado exponencialmente. O doente não deve ser penalizado por isso, mas deve haver uma certa contenção em pedir exames complementares de diagnóstico, fundamental para aliviar os custos da Saúde, para que se possa manter o acesso de todos os doentes ao SNS.
«TM» — Na sua opinião, é inevitável uma evolução no próprio SNS?
SM — O SNS como foi concebido era impraticável agora, era impossível aguentar os seus custos, mas há que ter cuidado com as privatizações, que não levam fundamentalmente a economias. A sua aplicação deve variar consoante a evolução, mas dentro do conceito do SNS, que está certo. Por exemplo, antigamente havia muitas leprosarias e sanatórios e bastou aparecer uma medicação para que desaparecessem instalações brutais em todo o Mundo.
«TM» — O que pensa da grande preocupação com o controlo dos gastos?
SM — Acho que tem de haver um controlo, e um controlo apertado, desde que isso não se faça sentir na falta de meios absolutamente necessários.
«TM» — Concorda que há desperdício no SNS?
SM — Sim, e o combate ao desperdício é fundamental. E o actual ministro tem tomado algumas medidas positivas.
«TM» — E outras polémicas...
SM — Sim, por exemplo as taxas moderadoras. E penso que a reestruturação das Urgências foi feita um pouco precipitadamente, em vez de se estudar o problema, pôs-se logo em prática. Tem de haver bom senso, bati-me sempre por isso.
«Carreiras médicas estão em perigo»
«TM» — Defende intransigentemente as carreiras médicas?
SM — Exactamente. Saudei, ainda enquanto estudante do 6.º ano, o chamado Relatório das Carreiras Médicas, que foi publicado em 1961, era secretário de Estado Gonçalves Ferreira, que, a meu ver, foi o precursor do SNS. Mas o relatório apareceu antes, em 1959, era eu estudante do 6.º ano. As carreiras médicas foram muito importantes, fundamentais, para a qualidade da Medicina. Agora, os contratos individuais de trabalho podem acarretar uma perturbação grande para as carreiras médicas, que estão em perigo.
«TM» — Também teme pelo futuro das carreiras?
SM — Temo um pouco pelo futuro das carreiras médicas, embora ache que é imprescindível que continuem. Mesmo com os contratos individuais, nos hospitais EPE, as carreiras podem manter-se. Mas é verdade que num hospital privado o patrão pode nomear o médico que quiser e é a subversão das carreiras. Depende da vontade que houver e acho que o Ministério da Saúde deve ter grande atenção e não permitir desvios das carreiras, que são a trave mestra do SNS. Deixar adulterar as carreiras médicas é um mau caminho para a qualidade da Medicina. Embora as carreiras tenham sido subvertidas, na prática, pelo tipo de concursos, pelos critérios de avaliação, em que houve uma subversão do aspecto clínico pela parte administrativa. Mas isso é fácil de corrigir.
Helena Nunes
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«Saúdo a Rede de Cuidados Continuados Integrados»
«TM» — O envelhecimento da população também tem aumentado os custos da Saúde?
SM — Sim, por isso saúdo o Dec.-Lei 101/2006, que criou a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, que a meu ver tem potencialidades enormes para resolver o problema da interface entre a Saúde e a Segurança Social. A actual rede, nas unidades de internamento de média e longa duração, já permite o co-pagamento, pela Segurança Social ou pelo próprio doente. Antes, o ministro Luís Filipe Pereira, com o Dec.-Lei 281/2003, criou uma rede de cuidados continuados, mas só de Saúde, o que significava que não podia haver co-pagamento pelos doentes do SNS. Esta lei nunca avançou, porque trazia custos brutais para a Saúde.
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«Jovens médicos mantêm o espírito de Hipócrates»
«TM» — Em que é que os jovens médicos de hoje são diferentes dos do seu tempo?
SM — Não vejo muitas diferenças, profissionalmente. A mentalidade dos jovens médicos continua a ser boa, profissionalmente continuam a ser bem preparados e mantêm o espírito de Hipócrates. No cumprimento das regras deontológicas e éticas os médicos de agora não são melhores nem piores que os antigos. No meu tempo não havia carreiras médicas, cada um ia à vida e lutava por si próprio. Hoje só há médicos especialistas, fruto da evolução das especialidades, e as condições de trabalho são melhores, as unidades de saúde estão mais bem equipadas. Mas os jovens médicos correm o risco de ser cada vez mais assalariados.
«TM» — Hoje os médicos também podem não estar nas carreiras...
SM — Defendi, quando foi criada a Associação Portuguesa dos Médicos da Carreira Hospitalar, que devia chamar-se apenas associação dos médicos hospitalares, porque incluir carreira na denominação era redutor. O médico, cada vez mais, pode trabalhar no hospital e não estar na carreira. Continuo a defender as carreiras intransigentemente, mas isso não significa que a associação não possa incluir médicos que não estejam na carreira, mas trabalhem nos hospitais, para que eles próprios se possam pronunciar sobre as carreiras.
Maior ligação entre os médicos
«TM» — O que pensa da criação das USF?
SM — A criação das USF é uma ideia boa, mas continua a perpetuar um vício, que é a separação absoluta entre clínicos gerais e médicos hospitalares, o que é mau. Partindo do princípio que os especialistas hospitalares devem ir aos centros de saúde — aliás, há várias experiências, por exemplo em Valência, em que todos os médicos fazem parte da mesma unidade de saúde —, as unidades locais de saúde, como a de Matosinhos, são um bom exemplo.
As USF têm contribuído para melhorar a situação dos médicos e dos doentes — com a prestação de mais cuidados domiciliários e um atendimento mais personalizado aos doentes —, mas também não têm tido a expansão que se previa.
«TM» — As unidades locais de saúde são um modelo positivo?
SM — O modelo de unidade local de saúde é positivo, mas quase não tem avançado porque as pessoas não querem. Acho fundamental que exista uma ligação maior entre os especialistas hospitalares e os de Medicina Geral e Familiar. Penso que nos centros de saúde devia haver, além da Medicina Geral e Familiar, outras especialidades. Isto é, em vez de os doentes se deslocarem aos hospitais para as consultas de especialidade, as especialidades viriam aos centros de saúde, as consultas externas dos hospitais deviam, em parte, ser feitas nos centros de saúde.
TM 1.º CADERNO de 2007.10.15
0712611C06107HN40A