sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Incongruência ou triste sinal dos tempos - Dr.José de Mesquita Montes - TM

Incongruência ou triste sinal dos tempos
A propósito de uma certa política de Saúde
Artigo de José de Mesquita Montes*

Carta aberta ao Senhor Ministro da Saúde, professor doutor António Correia de Campos

No decurso de 2006, cessou a minha carreira hospitalar, em virtude de ter atingido 70 anos, quando era director do Serviço de Ortopedia do Hospital Pedro Hispano/Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE.
Passei à situação de jubilado a 19 de Novembro de 2006, após 45 anos de exercício de Medicina dedicados a servir o doente, onde quer que ele estivesse.
Uma trajectória longa, semeada de múltiplos escolhos e dificuldades, que sempre procurei ultrapassar com uma força de vontade férrea e um determinismo inquebrantável, sempre pautado pelo primado da ética e da deontologia da arte médica e pelo respeito integral pela pessoa humana.
Foi assim possível construir uma obra multifacetada e espalhada por diversos locais, onde tive oportunidade de trabalhar.
Quase sempre parti do estádio zero e, durante anos de intenso labor, tive o ensejo de idealizar, construir e estruturar obras e unidades, que foram perdurando ao longo dos anos.
Foram tempos de labor exaustivo, de que guardo gratas recordações que constituem hoje uma parte importante do meu acervo histórico que, como V. Exa. pode calcular, está profundamente estruturado e bem codificado, mas que infelizmente começa hoje a ser beliscado …
A caminhada começou, em 1959, com a conclusão do ciclo teórico de licenciatura, ainda na velha Faculdade de Medicina do Porto/Hospital Geral de Santo António.
A passagem para o Hospital de S. João, que acabava de ser inaugurado (em 23 de Junho de 1959), constituiu um marco fundamental na minha formação. Aí integrei o 1.º Curso Médico, que terminou o ciclo clínico (7.º ano) na instituição.
Esta transferência abriu-me novas perspectivas de uma Medicina em tudo diversa daquela em que havia sido iniciado, tendo de imediato a noção de que iria integrar uma geração que havia de modificar o panorama médico do Porto e também do País, no início dos anos sessenta.
Efectivamente, essas gerações contribuíram, de modo decisivo, para um novo caminhar da ciência médica e da prestação dos cuidados de saúde.
Tive a oportunidade de integrar o primeiro grupo de médicos do Serviço de Ortopedia do Hospital de S. João, dirigido pelo saudoso mestre, professor Carlos Lima, o primeiro catedrático de Ortopedia da universidade portuguesa.
Foram anos de aprendizagem intensa e formação qualificada, que levaram à construção da primeira escola de Ortopedia do País, a qual teve um papel determinante na história da Ortopedia nacional, que se havia tornado independente da Cirurgia Geral cerca de 10 anos antes.
Nesse tempo era tradição os assistentes dos grandes hospitais do Porto (ultrapassada a fase de formação e de diferenciação, que culminava com a obtenção do título de especialista pela Ordem dos Médicos) assumirem a orientação de um serviço num hospital regional.

Primeiras artroplastias totais da anca no País

Em 1968, e após ter cumprido cinco anos de serviço militar obrigatório, dos quais dois anos e meio em Angola, fui convidado pelo provedor da Santa Casa de Misericórdia de Lamego para orientar o seu futuro Serviço de Ortopedia.
Aceite o convite, foi o idealizar e o estabelecer de uma unidade de Ortopedia e Traumatologia, separada da Cirurgia Geral, que como era habitual assegurava, até aí, alguns tratamentos da especialidade.
A estratégia delineada permitiu, ao fim de pouco tempo, a prática da quase totalidade dos actos de cirurgia ortopédica, com excepção da patologia tumoral óssea e casos complexos de cirurgia vértebro-medular, assegurando ainda, sempre que possível, a Urgência (de referir que residia no Porto e as estradas, em muitos troços, não passavam de caminhos pombalinos). Neste hospital foram realizadas as primeiras artroplastias totais da anca do País, em 1969.
Anos mais tarde, em 1972, assumi a coordenação de idêntico serviço no Hospital de D. Luís I, no Peso da Régua (minha terra natal).
Assim, as terras da região do Interior Norte do País -- a norte e a sul do rio Douro -- começaram a drenar os seus casos ortopédicos, ora para Lamego ora para o Peso da Régua, uma vez que não havia ortopedistas, quer no distrito de Vila Real quer em Bragança, existindo unicamente um no Hospital de Viseu.
Foram anos de intenso trabalho, liderando uma equipa coesa de colaboradores dedicados, pelo que o serviço à população era eficiente, de qualidade e, sobretudo, em tempo útil (não sendo necessário recorrer aos grandes centros, como infelizmente acontece hoje, com reduzida percentagem de doentes evacuados por insuficiência dos meios médicos).
Em 1977 retirei-me de Lamego e em 1984 do Peso da Régua, por razões de saúde, tendo a grande honra de legar dois serviços, para cuja fundação havia contribuído, perfeitamente aptos a prestar serviços válidos à população.
Os tempos passaram e criaram a «erosão» que V. Exa. conhece bem … mas disso falaremos mais adiante.

Ortopedia infantil

Paralelamente com a prática da Ortopedia do adulto, dediquei, desde a primeira hora, grande parte da actividade profissional à Ortopedia do indivíduo em desenvolvimento -- a Ortopedia infantil.
Tive a sorte de integrar, como já referi, o Serviço de Ortopedia do Hospital de S. João, o que me conduziu ao Hospital de Crianças Maria Pia, que na época tinha um papel relevante na assistência à criança.
Nesta instituição trabalhei cerca de 30 anos, ocupando todos os lugares da carreira hospitalar, o que me habilitou a desenvolver uma apreciável capacidade técnica neste domínio da ciência do aparelho locomotor.
A criação de um grupo de trabalho profundamente disciplinado e dedicado a este sector levou ao aparecimento de condições assistenciais até aí inexistentes e à divulgação, a nível nacional, de uma verdadeira e moderna Ortopedia infantil.
O intercâmbio de ideias e experiências com outros centros nacionais e até internacionais determinou, por sua vez, a formação de outros grupos de trabalho e sociedades científicas (portugueses e estrangeiros) vocacionados para o estudo, a divulgação e a investigação da Ortopedia infantil, cobrindo todos os aspectos desta subespecialidade.
Os resultados desta actuação tornaram-se rapidamente evidentes e daí a melhoria da qualidade da assistência à criança, atingindo-se os indicadores sanitários tão divulgados hoje em dia pelos nossos governantes.
Mas se a nível médico consegui atingir um lugar de destaque nesta área, quer a nível nacional quer internacional, foi inevitável o envolvimento na problemática da gestão do Hospital de Maria Pia.
Os anos oitenta foram extremamente relevantes para a minha prestação como gestor. A indigitação para director clínico, em 1984, levou a que fosse definida uma nova dinâmica para o hospital, que se pretendia fosse uma unidade de referência para a população com menos de 16 anos da região Norte. Nesse sentido, foi desenvolvido um detalhado programa de acção que, infelizmente, nunca foi levado totalmente à prática, pelo meu afastamento intempestivo da direcção em 1987.
As instalações do velho Hospital de Maria Pia estavam degradadas e insuficientes, tal como estão hoje passados 20 anos, razão pela qual lutámos junto do Ministério de Maldonado Gonelha para alteração de situação tão aviltante. Foi durante o seu mandato que se decidiu rever o projecto inicial da construção do novo hospital pediátrico do Porto, de 1975.
Durante dois anos tive a oportunidade de acompanhar e defender o novo programa dessa unidade, que estaria concluído, já em fase de estudo prévio, em Julho de 1986, em pleno consulado de Leonor Beleza.
Acontece que o então director-geral dos Hospitais, dr. Jacinto Magalhães, médico oriundo do quadro do Hospital de Maria Pia e também director do Instituto de Genética, pretendia ter um hospital pediátrico integrado e dependente do seu instituto.
Foi efectivamente a pressão deste dirigente que condicionou o abandono daquele programa e a definição de uma nova orientação -- devendo a construção do novo hospital ser efectuada na cerca do velho hospital -- um pequeno quintal, mesmo ao lado do Instituto de Genética.
O então primeiro-ministro, Cavaco Silva, chegou mesmo a visitar o Hospital de Maria Pia, já na Primavera de 1987, anunciando a dotação de 1 milhão de contos para o início dessas obras, as quais, apesar de múltiplos estudos, nunca tiveram início, por razões que desconheço. E deste modo a cidade do Porto perdeu aquele que seria o seu futuro hospital pediátrico.
A partir daqui muitas soluções foram aventadas até surgir a peregrina ideia do Centro Materno-Infantil do Porto, que após uma gestação turbulenta teve o destino que V. Exa. ditou.
Entretanto, o Hospital de Maria Pia, dirigido por individualidades de «visão curta», entrou em verdadeira autofagia, desviando-se dos grandes objectivos traçados em 1984, pelo que foi perdendo o seu lugar na assistência pediátrica do Norte e hoje em dia resta uma participação vestigial.
Abandonei o hospital em 1989, por discordar da orientação dos seus gestores e por ver coarctada a minha actuação, como ortopedista infantil profundamente empenhado no ensino, na divulgação e investigação da disciplina -- legando, apesar de toda a controvérsia, a experiência adquirida a dezenas de colaboradores, que foram realizando estágios no Maria Pia, e a todos aqueles que foram assistindo às múltiplas acções de formação realizadas nos anos subsequentes.
Foi uma decisão difícil, que alterou e cortou abruptamente planos que tinha traçado anos antes.
Seguiu-se a travessia do deserto, em que tive o ensejo de continuar a ensinar e a divulgar a Ortopedia infantil, através de seminários, cursos e congressos, quer a nível nacional quer no estrangeiro, no âmbito do exercício da clínica privada.

Ortopedia no Pedro Hispano

Aquando da abertura do Hospital de Pedro Hispano, em Matosinhos, no ano de 1997, fui convidado a liderar e fundar a sua Unidade de Ortopedia Infantil, o que me conduziu à integração no serviço que mais tarde haveria de dirigir.
O Hospital de Pedro Hispano, ao fim de 10 anos de existência, dispõe hoje de um Serviço de Ortopedia altamente qualificado, integrado por ortopedistas jovens e profundamente empenhados, com uma elevada diferenciação técnico-científica, pelo que está perfeitamente apto a responder às solicitações duma sociedade cada vez mais exigente, constituindo para mim uma grande honra e orgulho ter sido seu director e aí ter terminado a minha carreira em 19 de Novembro de 2006.
Ao longo de tantos anos de exercício, em tantos hospitais e nas mais diversas condições, era inevitável a minha participação na vida associativa da classe.
Por isso desempenhei funções na Ordem dos Médicos, sindicatos e associações médicas, e integrei múltiplos grupos de trabalho nas comissões inter-hospitalares e de nível ministerial.
Tal desempenho coincidiu com um período de grande agitação social e de profundas mudanças na sociedade portuguesa, pelo que foi com grande empenhamento que me dediquei à discussão e à organização do sector da Saúde em Portugal.
Daí o meu envolvimento na discussão e estabelecimento das carreiras médicas, nos anos 60, na organização dos hospitais após a nacionalização das Misericórdias, na estruturação dos internatos médicos e da formação médica continuada com a definição dos curricula, na organização dos concursos para assistentes hospitalares e chefes de serviço a nível nacional, na sua distribuição pelos hospitais e em tantas outras actividades, que era impossível relatar num documento desta natureza.
Foram mesmo 45 anos dedicados à defesa da classe, e indissociavelmente ligados à luta pela melhoria da prestação de cuidados ao doente.
Mas quando julgava encerrada a minha carreira hospitalar e quase tinha ultrapassado o período de nojo, que estas situações originam, fui um dia surpreendido por um telefonema do sr. director da Unidade Local de Saúde de Matosinhos, EPE/Hospital de Pedro Hispano, que me convidava para a cerimónia de abertura das comemorações do 10.º aniversário da instituição, o que não me surpreendeu, por ter sido, durante anos, o médico mais velho e mais antigo da casa.
Surpreendeu-me, sim, o facto de me ter sido anunciado que havia sido agraciado com a Medalha de Serviços Distintos do Ministério da Saúde e que esse galardão me seria entregue pelo sr. secretário de Estado, dr. Francisco Ramos, em representação do sr. ministro da Saúde, na referida sessão de abertura.
Se a atribuição de louvor público me tocou profundamente, a maneira como o texto de louvor está redigido sensibilizou-me ainda mais, porque nele são tratados, de maneira superior, os aspectos mais relevantes da minha actividade profissional.
Na sessão solene do Hospital de Pedro Hispano, em 19 de Março de 2007, aquando da entrega da medalha tive a oportunidade de agradecer a atribuição de tal benesse e anunciei que ela seria partilhada por todos aqueles que comigo trabalharam e permitiram o desempenho ao longo de 45 anos. Disse também que a oferecia a todos os doentes que beneficiaram da minha experiência e de igual modo a oferecia a todos os que careciam de cuidados, mas que ainda estavam nas listas de espera. Doentes a quem dava a minha solidariedade e a minha luta, já do outro lado da barreira, para poder levar a todos a ambicionada saúde.
Considerei encerrada, com esta sessão tão solene, a minha vivência como funcionário público.

Notícias incomodativas

Mas notícias, as mais diversas relacionadas com a saúde dos portugueses, que entretanto começaram a surgir nos jornais, na televisão e na rádio, vieram incomodar o cidadão, que sempre viveu dedicado a este sector.
Nos primeiros tempos foram as alterações relacionadas com a organização dos hospitais, a reestruturação dos serviços de Urgência, o encerramento das maternidades, as fusões hospitalares e toda uma série de determinações que atingiram negativamente o pessoal da Saúde.
Porque ao longo da minha vida perfilhei muitas ideias, que visavam a racionalização da distribuição de meios nos serviços, nos hospitais, com o objectivo de criar unidades tecnicamente válidas, aptas a um melhor desempenho, tendo em conta a redução dos custos, foi com estranheza que assisti à apresentação destes problemas, dando a imagem de uma marcada inabilidade na condução destas transformações, em que foi patente a falta de capacidade de comunicar e informar correctamente, o que levou inevitavelmente a avanços e recuos, a justificações inconsistentes, a cedência a pressões de toda a ordem e ao resvalar para um autoritarismo inaceitável no século XXI.
No fundo, um somatório de procedimentos pouco transparentes, em que sobressaía uma insuficiente e pouco esclarecida informação, o que irritou fortemente a generalidade da população, sobretudo aquela que se viu privada dos parcos meios assistenciais de que dispunha e ainda porque as escassas justificações apresentadas estavam eivadas de razões economicistas, que de uma maneira geral não respeitavam a «paridade da prestação de serviços», que devia abranger por igual todos os contribuintes portugueses, qualquer que fosse o seu local de residência.
Apesar de tantas reclamações dos mais diversos sectores da População, o sr. ministro da Saúde conseguiu (e vai conseguindo) impor as suas medidas com um determinismo e autoritarismo implacáveis.
O descontentamento do País é grande, sendo a desmotivação dos trabalhadores da saúde ainda maior, e o que sentirá o «velho lutador de 45 anos», que discutiu e contribuiu para a melhoria do sector da Saúde, como V. Exa. afirmou no seu louvor -- mais desiludido ficou, sobretudo quando viu parte do seu trabalho remetido para os «arquivos da História».
Terá havido efectivamente melhoria das condições de prestação de cuidados? Questiono-me se tal aconteceu, ao ler, ainda que transversalmente, os jornais e as notícias dos últimos meses. Continuam a surgir as antigas insuficiências e outras que o novo sistema criou!!!
Mas, sr. ministro, se a grande maioria das medidas e o modo como foram implementadas me desgostou profundamente, teve V. Exa., o condão de, no passado mês de Setembro, me chocar e desiludir ainda mais:
-- Ao anunciar o encerramento nocturno do Serviço de Urgência do Hospital de D. Luís I do Peso da Régua (minha terra natal) -- hospital onde trabalhei 12 anos como director do Serviço de Ortopedia -- 1972 a 1984;
-- Ao anunciar também o encerramento do Serviço de Ortopedia do Hospital de Lamego, por mim criado em 1968;
-- Ao assinar o documento que estabelece o Centro Hospitalar do Porto, extinguindo o Hospital de Maria Pia como entidade autónoma. Foi a este hospital que dediquei 30 anos da minha actividade, como ortopedista infantil.
Como pode calcular, foi com profunda mágoa e desgosto que vi surgir tais medidas, que põem termo, volvidos tantos anos, a unidades em que estive profundamente empenhado.
Foi por esse empenhamento que V. Exa. entendeu, bem recentemente, louvar-me.

Sentimento de agressão

Por mais razões que V. Exa. possa apresentar para justificar estas decisões, e nisso é V. Exa. perito, jamais conseguirá atenuar o meu sentimento de agressão e de delapidação do meu acervo histórico, que ficou assim privado dos seus pilares mais emblemáticos e ferido na sua integridade.
Mas o que mais lamento não é tanto a agressão à minha integridade histórica, mas sim a agressão a todos aqueles que vão ficar privados dos serviços, agora extintos ou a extinguir, sobretudo porque neste momento já não disponho de meios para, a partir do estádio zero, reconstruir, como antigamente e com outros dirigentes, as obras agora banidas. Mas porque estou do outro lado da barreira, como afirmei em Março de 2007, continuarei a defender os doentes carenciados de assistência.
Esta a verdadeira razão da mensagem e creia, sr. ministro, que apesar de me sentir profundamente magoado, manterei a minha disponibilidade para contribuir activamente para a discussão e organização do sector, em que o primado da justiça, da paridade e da proximidade presidam às medidas que venham a assegurar o bem-estar das populações, através de cuidados de saúde de elevado nível técnico e científico, apanágio do século XXI.

*Médico ortopedista

Subtítulos da responsabilidade da Redacção

Texto publicado, em exclusivo, em TM ONLINE de 2008.01.24
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