sábado, 9 de fevereiro de 2008

Transplantação hepática e Ordem dos Médicos - TM

Transplantação hepática e Ordem dos Médicos
Artigo de Carlos Alberto Godinho C. Mesquita*

A transplantação hepática voltou a ser notícia de primeira página e, mais uma vez, pelos piores motivos. Considero isto inaceitável e entendo ser meu dever contribuir para o equacionar de uma problemática que, enquanto cirurgião, acompanho há já 20 anos e que, apesar das aparências, continuará por resolver, se outras medidas não forem tomadas.
Não integrando, presentemente, por questões institucionais que me ultrapassaram, a equipa de transplantação hepática dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), o facto de ter participado em cerca de 10% dos transplantes ali efectuados permite-me ter uma opinião algo fundamentada acerca do que tem vindo a passar-se, sendo que já por diversas vezes, noutros locais e perante outras entidades, expressei a minha preocupação pela forma como estava a ser desenvolvido aquele programa.
Começo por chamar a atenção para um primeiro aspecto particularmente negativo: uma forma de estar e actuar num hospital público à margem de tudo o que é normal no âmbito da carreira hospitalar, traduzida, em última análise, por uma sistemática exclusão da generalidade dos internos de Cirurgia e dos cirurgiões mais novos, quando o desejável seria, precisamente, o contrário, até porque a idade média do grupo de colegas que integra a equipa ronda os 55 anos e até já foi mais elevada.
Não se compreende que um interno de Cirurgia Geral possa passar seis anos nos HUC sem participar ou, sequer, assistir a um transplante de fígado, quando é sabido tratar-se de uma actividade de enorme riqueza do ponto de vista formativo, desde as colheitas até ao transplante em si mesmo.

Os incentivos à transplantação

Não posso, em segundo lugar, deixar de concordar com os que consideram estar a causa de tudo isto nos chamados incentivos à transplantação, que não andarão longe dos cinco milhões de contos em 15 anos, distribuídos com base no princípio do pagamento por acto e de acordo com critérios que sempre escaparam ao conhecimento do comum dos mortais.
Não me parece que algo justifique, hoje em dia, num hospital público e face à grave situação que o País atravessa, que os transplantes continuem a ser pretexto para pagar a um pequeno grupo de forma principesca e milionária. Só o reconhecimento e correcção desta situação poderá contribuir, decisivamente, para que a transplantação hepática passe a decorrer num ambiente de maior normalidade institucional, maior humildade e menor truculência.
Também isto, no entanto, deve ser precedido de uma palavra da Ordem, exigindo do respectivo Colégio de Especialidade que saia da letargia que o tem caracterizado, se reorganize e se assuma como líder de todo um processo de desenvolvimento da Cirurgia Geral, o qual não poderá passar ao lado desta questão concreta, definindo modelos de actuação mais condizentes com os diversos tipos de resposta que são de esperar de hospitais de níveis diferentes.
A solução para os problemas actuais nunca deixará de ser transitória se não for encontrada num contexto de renovação global da dinâmica cirúrgica hospitalar, que tenha por pressupostos o respeito pelo direito dos profissionais e do povo deste país a uma actividade projectada para o futuro, da qual a Ordem dos Médicos não se pode alhear, sob pena de, também aqui, ficar a ver o seu campo de acção definitivamente ocupado por mais uma alta autoridade ou entidade reguladora!

A questão da colheita de órgãos

Questão intimamente ligada a esta é a das colheitas de órgãos, uma actividade que se cruza, inevitavelmente, com o dia-a-dia dos serviços e que necessita de ser desenvolvida, dinamizada, de modo a poder deixar de estar na exclusiva dependência das equipas de transplantação, libertando-as até, o mais possível, da mesma.
É público que o nosso país tem vindo a perder terreno nesta matéria, tendo passado, nos últimos anos, do segundo para o sexto lugar, no âmbito europeu, apesar da legislação particularmente favorável de que dispõe. Enquanto em Espanha se efectuam, por ano, cerca de 35 colheitas por milhão de habitantes, em Portugal os números andam próximos das 20, não estando os hospitais a aproveitar as suas reais capacidades. Em 2006, apenas metade dos hospitais portugueses habilitados para esta prática clínica a terá posto em campo e, em boa parte dos casos, com recurso a equipas vindas do exterior.
As deficiências são conhecidas, quer no que toca ao reconhecimento dos potenciais dadores, quer no que respeita à competência instalada para efectuar colheitas de órgãos, neste caso por óbvia falta de atenção à necessidade de dar este tipo de formação ao maior número possível de cirurgiões gerais.
Uma problemática, mais uma, a que a Ordem dos Médicos e o respectivo Colégio de Especialidade deviam dedicar mais atenção.
Conhecida que é a disponibilidade e interesse por este assunto da generalidade dos cirurgiões, em especial os mais novos, é fundamental que sejam dadas instruções precisas, por parte de quem de direito, no sentido de passarem estes elementos a ser sistematicamente informados e convidados a integrar as equipas de colheita, de maneira a que, num futuro que se deseja próximo, o possam vir a fazer de modo qualificado e de forma autónoma.

*Cirurgião dos Hospitais da Universidade de Coimbra

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