segunda-feira, 3 de março de 2008

Medicina de Urgência como especialidade - TM

Medicina de Urgência como especialidade
Artigo de Nelson Pereira*

Contrariamente ao que muitos pensam, eu, pelo meu lado, entendo que não se tem discutido suficientemente a problemática da necessidade da criação da Medicina de Urgência como uma «nova» especialidade.
Como em muitos dos nascimentos de novas especialidades, este está a ser precedido de polémicas, «jogos do empurra», movimentações de “lobbies”, que fazem com que uma evolução natural organizativa da ciência médica não se desenrole como uma gravidez normal culminando num parto natural (sem dor), mas antes como uma gravidez de risco que necessariamente vai terminar num parto distócico, mas que se espera sem complicações “major” para o recém-nascido.
Porque, há que ser claro, não estamos a falar de novas doenças ou novas técnicas diagnósticas como o cerne desta nova especialidade, mas antes de uma estratégia organizativa (e de uma estratégia de abordagem dos doentes) que deve ter um corpo de médicos com uma preparação específica para o efeito. Uma preparação que passa certamente por uma visão centrada na rápida exclusão (e tratamento) de situações life-saving, mas também na identificação de outras condições que precisam de orientação diagnóstica e terapêutica, imediata ou diferida, e que pode ser providenciada por si ou por outros, dependendo da condição patológica específica e da condição organizativa do serviço onde se insere. Além disso, a Medicina de Urgência é tida como contendo em si mesma a lógica da organização dos sistemas de emergência pré-hospitalar e intra-hospitalar, numa visão que vem desde 1991 numa declaração da International Federation for Emergency Medicine.

Disciplina abrangente

Mas a Medicina de Urgência não pode, ou não deve (sobretudo de forma propositada), ser confundida com Medicina de emergência. A primeira (o verdadeiro desígnio) compreende a segunda, e é uma disciplina abrangente que se dedica a todo o espectro da prevenção, diagnóstico e tratamento das doenças ou traumas que se apresentam com carácter agudo e urgente.
Se caminharmos para a solução mais fácil da criação da especialidade, ou ainda mais fácil da subespecialidade, de Medicina de emergência (capaz de acalmar os ânimos de anestesistas e internistas), vamos deixar o panorama real dos nossos serviços de Urgência exactamente onde estão. Ou seja, com áreas de tratamento de doentes emergentes (felizmente) cada vez mais organizadas, e com áreas de tratamento de doentes urgentes cada vez mais desorganizadas, com profissionais tantas vezes sem diferenciação, e outras tantas sem vínculo, fazendo o que a maior parte dos médicos não aceita fazer e fazendo muitas vezes menos bem. Na verdade, é neste local (crítico) que se joga o sucesso organizativo de um serviço de Urgência. É aqui, por exemplo, que escapam os diagnósticos menos evidentes ou que se dão as altas que vão condicionar maior número de reinternamentos.
E não estamos a reinventar a roda: a especialidade de Medicina de Urgência existe nos EUA desde 1979, existe formalmente em nove países da UE e até a vizinha Espanha, numa declaração do seu Ministério da Saúde já no mês de Fevereiro de 2008, aceitou dar os passos necessários para o seu reconhecimento.
Por outro lado, se bem que é possível concordar que tem a Medicina Interna actualmente um dos melhores “curricula” na preparação para esta área de actividade, sendo a Medicina de Urgência uma especialidade que se movimenta na abordagem de doentes do foro «médico», «cirúrgico» ou traumatológico, ela fica, até por definição, deslocada do desejável.
Na verdade, a Medicina Interna tem sido a grande opositora do nascimento desta nova especialidade, porque entende que de alguma forma corre o risco de ser «afastada» dos serviços de Urgência, o que é visto por alguns como o «último reduto» onde é, ainda, líder de processos. Mas os verdadeiros «redutos» da Medicina Interna são certamente a gestão do todo do doente internado com patologia aguda, complexa ou multidisciplinar e a gestão diagnóstica dos doentes. Por isso, entendo que todos os internistas devem centrar a sua «luta» na procura de uma organização departamental dos serviços de internamento da área «médica» em que eles são os gestores de TODOS os doentes, independentemente do foro a que respeite o seu diagnóstico principal.
Há, assim, dois grandes desafios a vencer na próxima década. Por um lado, uma aposta clara no internista como gestor do doente internado, por outro, uma aposta igualmente clara no urgencista como gestor do doente do serviço de Urgência. Seremos, assim, capazes de melhorar os cuidados prestados quer num lado quer no outro, e significa que estamos a pensar a Saúde de uma forma centrada no utente, condição absolutamente necessária para que existam verdadeiros ganhos.

*Ex-director clínico do INEM

Título e subtítulo da responsabilidade da Redacção

TEMPO MEDICINA ONLINE de 2008.03.03
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